Os Vivos e os
Mortos (“The Dead”, 1987) é um filme de John Huston, baseado no conto “The
Dead” de James Joyce, em seu livro Dublinenses
(1914; minha edição é Dubliners,
Penguin Popular Classics, 1996).
É a história de um jantar tipicamente irlandês, na Noite
de Reis, na Dublin de 1904, entre família e amigos. Um jantar com música ao piano,
dança, bebida (sem exagero), risadas, breves momentos de tensão (todo mundo
querendo se comportar bem, e se esforçando para que ninguém estrague a festa).
E, no final, um casal que sai da festa para um quarto de hotel, onde a esposa
conta ao marido um episódio romântico e triste de sua juventude.
É basicamente isto, mas é o suficiente para que muitos
escritores e críticos considerem o conto “um dos melhores da literatura
inglesa”, e o filme “um dos melhores da carreira de John Huston” (que fez o
filme com 80 anos, e morreu antes da estréia).
O filme é também um excelente exemplo de roteiro (por
Tony Huston, filho do diretor) fidelíssimo ao texto literário original.
A festa de Reis é chamada de “Epifania”, e o uso comum da
palavra equivale a “revelação”, aquele instante em que alguém tem a percepção
súbita de uma verdade oculta ou transcendental. Vai ser difícil encontrar
alguma análise do conto de Joyce que não refira esta palavra.
(Cathleen Delany, "Tia Julia"; Helena Carroll, "Tia Kate" e Anjelica Huston, "Gretta Conroy")
O personagem principal do conto é Gabriel Conroy, que vai
com a esposa Gretta a essa festa anual de suas tias solteiras Kate e Julia
Morkan, que vivem com outra sobrinha, Mary Jane. As três são instrumentistas,
professoras de música, e as mais velhas formaram gerações de músicos, que as tratam
com carinho e respeito. Nesse jantar anual, parentes, amigos e colegas se
reencontram.
Gabriel Conroy é um personagem movediço, cheio de boas
intenções e de gestos impensados. Trata as pessoas de quem gosta com uma rudeza
que parece não lhe pertencer, alimenta vaidades tolas, certezas reconfortantes,
e medos sem razão. Toda a história do conto/filme é uma sucessão de equívocos
seus com relação às mulheres que o cercam.
Estes equívocos são breves interações que Conroy inicia com
o melhor sorriso e a frase mais pronta, e das quais se retira minutos depois
com o rosto ruborizado, a respiração opressa, perplexo ao perceber que está
enraivecido e não sabe por quê.
Conroy é um homem culto (resenha livros para um jornal de
Dublin, onde o próprio Joyce colaborava), cosmopolita (gosta de viajar pela
Europa), sincero (no conto, seus pensamentos de ternura e admiração pela esposa
chegam a ser comoventes em alguns trechos).
Ao mesmo tempo, é esnobe: desiste de fazer citações
literárias em seu discurso-após-a-ceia porque acha que aquele pessoal não vai entendê-las,
e envergonha-se da origem regional da esposa Gretta.
Conroy é o típico “tiozão” simpático, adepto da conversa
superficial e da repetição de clichês. Logo ao chegar na casa, ele troca breves
frases com Lily, a criada, que ele conhece desde que era uma garotinha.
-- Diga-me, Lily – disse ele num tom
amistoso. – ainda está na escola?
-- Oh, não, senhor – respondeu ela. –
Terminei há mais de um ano.
-- Oh! Então... – disse Gabriel alegremente
– imagino que um belo dia estaremos indo ao seu casamento com um rapaz, hein?
A garota olhou para ele por cima do ombro e
disse com grande amargura:
-- Os homens de agora só querem saber de
conversa e do que podem conseguir com a gente.
(p. 202,
trad. BT)
A resposta inesperada da garota deixa Conroy
desconfortável; ele volta a lembrar dela durante a noite.
Logo a seguir, quando estão dançando quadrilha, ele faz
par com uma antiga colega de faculdade, Miss Ivors. Ela é uma mulher
desinibida, desenvolta, politizada, e começa a lhe dar alfinetadas, deixando-o
silenciosamente amedrontado. Ela o critica por escrever resenhas literárias para
um jornal que ela considera politicamente reacionário (simpatizante da
Inglaterra, em detrimento da independência da Irlanda).
Ele não sabia como reagir àquela acusação. Pensou em dizer que a literatura
estava acima da política. Mas eles eram amigos há mitos anos, suas carreiras
tinham corrido em paralelo, primeiro na Universidade, e depois como
professores: ele não podia se arriscar a dar-lhe uma resposta presunçosa. Continuou
piscando os olhos e tentando sorrir, e murmurou frouxamente que não via nada de
político em resenhar livros. (pag. 214, trad. BT)
Miss Ivors é diferente da esposa dele, Gretta, cuja
família vem de uma província meio desvalorizada. (Quando alguém lhe pergunta se
Gretta é de lá, ele responde defensivamente: “Os parentes dela são.”) O diálogo
entre Conroy e Miss Ivors começa durante uma dança de quadrilhas, onde há troca
de pares, e essa alternância de alfinetadas e interrupções é bem costurada
tanto no texto quanto no filme.
Miss Ivors inquieta Conroy com seu comportamento
anti-convencional. A certa altura, ele está conversando com outra conviva e
pensando nela:
Enquanto sua língua tagarelava, Gabriel tentou banir da mente qualquer
lembrança do desagradável incidente com Miss Ivors. Claro que a moça, ou a
mulher, ou seja lá o que ela fosse, era uma entusiasta, mas existe hora para
tudo. (pág. 217)
Gabriel é tradicionalmente encarregado do discurso
principal dessa Noite de Reis, e ele já chega à festa nervoso, consultando
discretamente as anotações que traz no bolso, tenso pela obrigação de ser o
mais brilhante.
Miss Ivors tinha elogiado sua resenha. Estava sendo sincera? Será que
ela tinha mesmo alguma vida pessoal além de seu propagandismo? Nunca tinha
havido um clima negativo entre os dois até aquela noite. Ele ficava nervoso ao
pensar que ela estaria sentada à mesa da ceia, olhando-o enquanto ele falava,
com aqueles olhos inquiridores. (pág.
219)
Um dos poucos detalhes que o filme insere e que não estão
no conto é na saída de Miss Ivors: ela se despede de todos, tem um compromisso
– e o filme deixa claro que é uma reunião política. Uma mulher sozinha sai de
uma ceia para uma reunião política!
No conto, Gabriel Conroy tenta acomodar na vida real este
fato estranho.
-- Mas como vai para casa? – perguntou Mrs.
Conroy.
-- Oh, daqui até o cais é um pulo.
Gabriel hesitou um momento e disse:
-- Se me permite, Miss Ivors, posso ir
deixá-la em casa, se precisa mesmo sair.
Mas Miss Ivors desvencilhou-se dos dois.
-- Não me falem mais nisso. Pelo amor de
Deus, vão logo para sua ceia, e não se incomodem comigo. Sou bem capaz de
cuidar de mim mesma. (pág. 223)
Logo em seguida vem a ceia, onde Gabriel, o “sobrinho
preferido” das donas da casa, tem um duplo papel de estrela. Cabe a ele não só fazer
o discurso, como a tarefa de cortar e servir as fatias do ganso.
Gabriel sentou-se com autoridade à cabeceira da mesa e, tendo conferido
o gume do facão, enterrou firmemente o garfo no corpo do ganso. Sentia-se
totalmente à vontade agora, porque era um especialista no corte da ave, e nada
lhe dava mais prazer do que ver-se à cabeceira de uma mesa bem servida. (pág.
225)
A ceia, a reunião dessas pessoas, ocupa três quartos da
narrativa, mas sua parte mais tocante é a volta de Gabriel e Gretta Conroy para
o quarto do hotel (eles não moram mais em Dublin), e ali, quando Gabriel começa
a se despir e a abraçar a esposa, cheio de expectativa por aquela noite a sós, livres
da casa e das crianças, vê que ela está melancólica, distante, olhando a neve
que cai lá fora.
É então que ele, compreensivo, carinhoso, pede para saber
o que se passa na cabeça dela. Ela está tão absorta que, sem negacear, começa a
lembrar uma história de amor adolescente que viveu, e que nunca contara ao
marido. Uma história que lhe foi despertada por uma canção cantada naquela
noite, que ela escuta da escada, “The Lass of Aughrim”.
É a história de um rapaz que ela conheceu quando muito
jovem, um rapaz de 17 anos, chamado Michael Furey. Não foi uma paixão adulta,
sensual. O rapaz, diz Gretta, era “muito
delicado”, tinha “olhos escuros,
imensos! E uma tal expressão neles – uma expressão!”. Os dois, muito novos, costumavam caminhar
juntos, e ele gostava de cantar “The Lass of Aughrim” para ela.
Quando a família determinou que ela iria morar longe, o
rapaz estava doente, mas fugiu de casa, numa noite de neve, para despedir-se
dela. Ela o avista no quintal, perto de uma árvore. Ela diz: “Vá embora, você está doente, assim você vai
morrer”. E o menino diz: “Eu não
quero mais viver.”
“Acho que ele
morreu por minha causa”, diz ela.
São as páginas finais do conto, e os minutos finais do
filme, em que Anjelica Huston toma conta da cena, uma daquelas cenas intimistas
e concentradas à maneira de Ingmar Bergman. Esta cena dá uma das medidas para
compreender James Joyce, porque um contista de sua época seguiria a ladeira
inevitável do melodrama, com cena de ciúmes, bate-boca, alguma escaramuça
física por parte do marido que se sente "traído" ao descobrir que
havia algum aposento na alma da esposa a que ele não tinha acesso.
Joyce faz com que Gabriel Conroy, diante de mais esta
perda de conexão com uma mulher que acreditava próxima, se veja, de certa
forma, e pela primeira vez, pelos olhos delas.
Uma consciência envergonhada de sua própria pessoa o invadiu. Ele se
viu como uma figura ridícula, agindo como um menino de mandados para suas tias,
um sentimentalista nervoso e bem intencionado, perorando diante do populacho e
idealizando sua própria luxúria patética, um indivíduo cheio de empáfia e digno
de pena, aquele mesmo que ele tinha vislumbrado no espelho. (pág. 251)
A revelação humilhante é transformada por Joyce em
epifania reveladora, porque a mulher, depois de chorar e chorar, deixa-se cair
na cama e adormece. Ele fica à janela, contemplando a neve que cai e pensando
na vida.
O ar do interior do quarto esfriou seus ombros. Ele esticou o corpo
cautelosamente para baixo do lençol e deitou-se ao lado da esposa. De um em um,
eles todos estavam se tornando sombras. Seria melhor passar corajosamente para
o outro mundo, dentro da glória plena de uma paixão, do que definhar e
apagar-se com a velhice. Ele pensou em como aquela mulher ao seu lado tinha
trancado em seu coração por tantos anos a imagem dos olhos do rapaz que amara,
no instante em que ele lhe disse que não queria mais viver.
Lágrimas generosas encheram os olhos de Gabriel. Ele nunca se sentira
daquela maneira em relação a uma mulher, mas sabia que esse sentimento devia
ser amor. As lágrimas se avolumaram em seus olhos e na escuridão parcial ele
imaginou estar vendo o vulto de um rapaz parado embaixo de uma árvore gotejante.
Havia outras formas por perto. Sua alma estava se aproximando de uma região
habitada pelas vastas multidões dos mortos. E ele tinha consciência, mesmo sem
compreendê-la, da sua existência incerta e bruxuleante. (pág. 255)
Conta-se que este derradeiro episódio se baseia numa
confidência real, feita pela mulher de Joyce, Nora Barnacle, sobre uma paixão
de adolescência. O conto seria, entre outras coisas, um relato de um processo
de aceitação e entendimento da vida alheia (da autonomia e da irredutibilidade
da vida alheia) por parte do escritor.
Outro ângulo interessante do conto é que Gabriel Conroy
parece ser um daqueles irlandeses que de certa forma acham a Irlanda
constrangedora em suas limitações e seus atrasos. Ele não compreende a velha
Irlanda, assim como não compreende as mulheres. Os cosmopolitas querem a Europa,
mesmo que ao preço da submissão à Inglaterra. Querem “ser aceitos lá fora” –
como o próprio Joyce sempre quis. Como conciliar isso com o patriotismo cego
dos irlandeses? A obra de Joyce é também o relato dessa epifania, da realização de uma obra onde a Irlanda continuasse Irlanda mas acomodasse dentro de si o mundo.