sábado, 18 de maio de 2024

5063) James Joyce e o surrealismo (18.5.2024)




Há cerca de cem anos, a Literatura e o Inconsciente estavam embarcando numa lua-de-mel intensa e desconcertante. Como em tantas luas-de-mel, o desejo mútuo era avassalador, mas ao mesmo tempo era preciso renegociar expectativas, demarcar jurisdições, sincronizar ritmos, assimilar surpresas, descartar inadequações, apresentar trunfos, regar terrenos promissores, virar a mesa quando preciso, cultivar a antiga arte do armistício negociado. 
 
Digo “há cerca de cem anos” porque nenhuma aventura literária é datada. Para quem precisa de uma âncora cronológica, lembro que o primeiro Manifesto do Surrealismo foi publicado por André Breton em 1924. 
 
Quando falamos da atividade literária talvez seja mais útil focalizar décadas do que anos; e as décadas entre as duas Guerras Mundiais foram um período muito rico na história da Europa. Uma festa num edifício com incêndio no porão. 




O Surrealismo já existia como espírito e prática. Era um oitavo-passageiro alimentando-se da energia do movimento Dada. E em 1920 já era publicado o livro Les Champs Magnétiques, escrito a quatro mãos por Breton e Philippe Soupault, considerado uma das primeiras experiências oficiais da “escrita automática”. 
 
A escrita automática é a prática paradoxal de escrever sem pensar, escrever sem raciocinar, sem julgar, sem premeditar efeitos, sem ajustar-se a regras. Na definição clássica de Breton, no manifesto de 1924: 
 
Surrealismo, s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral.
(André Breton, Manifestos do Surrealismo, Ed. Nau, Rio, 2001, trad. Sérgio Pachá, p. 40)  



(placa no Hôtel des Grands Hommes, Place du Panthéon)


Durante esse mesmo período, esfingeticamente alheio ao Surrealismo (será?), James Joyce estava em Paris, na reta final de elaboração de seu Ulisses, que sairia finalmente em 1922. 
 
A publicação de um livro é muito diferente do nascimento de uma pessoa. Um livro só começa a existir para o público depois que é editado, mas muitas vezes (é o caso do Ulysses) ele já existia não só para seu autor, mas para pessoas que acompanhavam sua criação. Já era uma realidade literária, mesmo que numa bolha restrita. 
 
James Joyce desembarcou em Paris em meados de 1920, vindo de Trieste e Zurique. Les Champs Magnétiques tinha acabado de surgir, e as polêmicas bretonianas estavam taxiando para decolar. Joycismo e Surrealismo eram dois vulcões fumaçando à distância, levemente conscientes da existência um do outro. 
 
E cada um deles mergulhando sem medo no magma ardente do inconsciente, e cuspindo-o para o alto em forma de lavas e palavras. É curioso observar que de todo o grupo Surrealista foi justamente Philippe Soupault o único que tornou-se amigo de Joyce e frequentou seu círculo de amizades literárias até o fim da vida – se bem que as amizades de Joyce, tal como as de André Breton, estavam sempre sujeitas a chuvas e trovoadas. 



(Philippe Soupault)


Qual seria a divergência entre o Surrealismo e a literatura joyceana? Ambos pareciam buscar o fluxo-de-consciência, o acasalamento freudiano entre palavras, a algaravia primordial, um nonsense permanente e libertador, os duplos-sentidos eróticos onipresentes.  Sua divergência não era proposital nem antagônica: eram apenas dois projetos literários distintos, bebendo na mesma fonte, numa Paris em que havia um movimento de vanguarda em cada esquina. 
 
Curiosamente, o Surrealismo enxotava a pontapés o conceito de estética literária, como se vê na definição acima. O propósito de Breton, por incrível que pareça, dava à Ciência um protagonismo que ia além da mera prosa, da mera poesia. Sua fascinação por Marx e Freud não derivava apenas do impulso revolucionário da filosofia de ambos, mas por serem tentativas de resolver cientificamente, pragmaticamente, os problemas das sociedades e das mentes humanas. 
 
É certo que o surrealismo, que vimos adotar socialmente, de caso pensado, a fórmula marxista, não pretende dar como algo de somenos valia a crítica freudiana das idéias: muito pelo contrário, considera tal crítica a primeira em importância e a única assentada em bases firmes. 
(“Segundo Manifesto”; pág. 191-192)
 
Coube a Breton, anos depois, fazer um diagnóstico dessa divergência, e é curioso como ele trata de maneira um tanto desdenhosa a literatura. (Ao expurgar alguns dos ex-companheiros, ele muitas vezes os acusava de estar querendo fazer literatura, e não surrealismo.) 




Em “Do Surrealismo em suas Obras Vivas”, texto de 1953 incluído no volume dos “manifestos”, Breton argumenta:
 
Embora manifestem uma vontade comum de insurreição contra a tirania de uma linguagem inteiramente aviltada, procedimentos como a “escrita automática”, na origem do surrealismo, e o “monólogo interior”, no sistema joyciano, radicalmente diferem em seus fundamentos. (pág. 356) 
 
Para Breton, Joyce pretende fazer, de sua prosa, 
 
... um fluxo que ele se esforça por fazer jorrar de todos os lados e que tende, afinal, à imitação mais próxima possível da vida (e, assim fazendo, ele se mantém no âmbito da arte, recai na ilusão romanesca, não evita tomar lugar na longa linhagem dos naturalistas e expressionistas). 
 
É uma formulação mais madura e mais diplomática do desabafo feroz de Breton no “Segundo Manifesto”: 
 
Que poderiam esperar da experiência surrealista os que de algum modo se preocupam com o lugar que ocuparão no mundo? (pág. 154) 
 
O autor dos Campos Magnéticos não está preocupado com a linha evolutiva da literatura européia, ou algo equivalente. E diz: 
 
A essa mesma corrente – muito mais modestamente, à primeira vista – o “automatismo psíquico puro” que comanda o surrealismo oporá a vazão de uma fonte que apenas cumpre explorar suficientemente fundo, no interior de cada um, e da qual não seria possível tentar dirigir o fluxo sem a certeza de estancá-lo. (pág. 356-357) 
 
Breton afirma que o surrealismo descobriu e dominou a técnica de acessar o Inconsciente, ou de transformar o Inconsciente em discurso. Ora, todo artista que proclama suas descobertas exagera seus méritos e seu alcance. A descoberta surrealista é (para mim) uma das mais importantes da literatura moderna, e entendo o entusiasmo (e a relativa empáfia) de André Breton ao dizer: 
 
[A] idéia surrealista visa, simplesmente, à recuperação total de nossa força psíquica por um meio que mais não é do que a descida vertiginosa ao interior de nós mesmos, a iluminação sistemática dos lugares ocultos e o obscurecimento progressivo dos outros lugares, o passeio perpétuo em plena zona proibida. (pág. 166). 
 
[J]á não se trata, essencialmente, de produzir obras de arte, mas de iluminar a parte não revelada e, por conseguinte, revelável, do nosso ser. (pág. 382) 
 
O otimismo de Breton se justifica em função da juventude, do entusiasmo, do furor polêmico (a existência do Surrealismo é pontilhada de pelejas, de rompimentos, de defenestrações). 



(André Breton, por André Masson)
 

A “escrita automática”, contudo, nunca chega a constituir um produto final, quando se trata de publicar livros: é matéria-prima, a ser retrabalhada literariamente. Um texto de Stéphanie Parent (da Université du Québec à Montréal) examina os manuscritos originais de Les Champs Magnétiques, a obra em que a escrita automática foi oficialmente lançada; e constata como o texto foi corrigido, revisado, consertado e em muitos pontos melhorado pelos dois poetas, principalmente por Breton. 
 
Aqui:
https://admin.oic.production.nt2.ca/wp-content/uploads/2013/06/cf4-12-parent-le_manuscrit_des_champs_magnetiques.pdf
 
O jogo verbal do Inconsciente é um fenômeno fascinante, mas não podemos menosprezar o puxão gravitacional da literatura. James Joyce se entregou a ele com total abandono, e os Surrealistas, Breton inclusive, com um misto de recalcitrância e esperneio. Nada de mais. A prosa surrealista (estou nestes dias terminando a leitura do Peixe Solúvel, 1924, de Breton) não pode se comparar à ossatura narrativa sólida (ainda que surpreendente) do Ulysses. Talvez se aproxime do fluxo menos linear do Finnegans Wake
 
Se bem que James Joyce, mesmo quando elogiava autores de vanguarda, dizia: “Se perguntarem a eles o que significa alguma passagem tipicamente obscura de seus livros, não saberão o que dizer. Quanto a mim, sou capaz de justificar cada palavra de cada livro meu.”  












quarta-feira, 15 de maio de 2024

5062) Palavra de sertanejo (15.5.2024)



(Praça da Bandeira ) 


São as histórias antigas de Campina Grande, cujo povo brilha mais pela imaginação do que pela fidelidade aos fatos. Os fatos, para os campinenses, são uma espécie de argila úmida, que o narrador vai modificando à medida que conta, com tal detalhismo e destreza que um notebook PC em poucos minutos se transforma num Mac.  
 
Esta aqui me foi contada por Bastinho. Um “caba bom”, da minha geração, que tem uma loja de auto-peças na rua Índios Cariris, é torcedor do Treze, e nos velhos tempos frequentava o Caldo de Peixe do velho Ferreira e o Sinatra Bar, de Rostand. 

Gordão, sorridente, tem uma voz de estremecer paredes. Nos tempos em que a gente ia para lá com violão na mesa, ele se chegava, puxava cadeira, desfiava Altemar Dutra até ficar todo mundo com lágrimas nos olhos. 
 
Nesta vez, eu estava em Campina e fiquei bebendo com uma turma de meia dúzia, no abrigo da Praça da Bandeira. No meio da conversa alguém mencionou um caso recente de assinatura falsificada, que só foi descoberto quando a família pegou o carro e veio de Puxinanã para Campina para checar no Cartório. 
 
– Você devia ter conhecido meu avô – disse Bastinho. – Com ele não tinha esse problema. 
 
Ele falava para todos, mas se dirigia a mim, porque sabia que eu moro no Rio de Janeiro, e alimentava a esperança de que suas histórias acabassem na TV Globo. 
 
– Como era o nome dele? – incentivei. 
 
– Paulo Bezerrão – disse Bastinho. – A gente não é da família Bezerra. O apelido é porque uma vez ele matou um bezerro com um murro. 
 
– Eita mentira – disse alguém. – Tem prova? 
 
– Não tem porque naquele tempo não existia celular nem Instagram – disse Bastinho, franzindo a testa e estufando o peito. – Mas tem a palavra da minha avó, que viu a cena e mesmo assim noivou com ele. 
 
– Quem tem boca diz o que quer. Se for por isso, meu avô foi na Lua e voltou – disse Nicanor, um bêbo meio sem assunto. – Diga que é mentira! 
 
– Isso aí não é mentira, é ilusão – disse Biliu de Campina, fingindo que ajeitava a aba do chapéu. – É você pensando que é engraçado. 
 
Antes que Nicanor pegasse ar, eu trouxe o assunto de volta. 
 
– Mas o que é que teu avô tinha a ver com falsificação? 
 
– Rapaz, é uma história comprida. Bezerrão herdou de um tio dele, que eu não sei mais quem era, uma terra meio ruinzinha, lá na região de Imaculada. Nesse tempo ele morava em Água Branca, foi antes do meu pai nascer. Nessa terrinha tinha uma casa meio estragada, uns moradores, uns roçadinhos, ele ia lá de vez em quando mas nunca se interessou. Acontece que ele criou uma dívida de jogo com um amigo dele, era bastante dinheiro, chegaram quase a se intrigar por causa disso. 
 
“O amigo, um tal de Teófilo, propôs que Bezerrão passasse essa terra pro nome dele. Eram dois velhos teimosos, com pouca paciência pra vida prática, só queriam saber de caçada, bebida, farra. Em vez de irem num cartório, Bezerrão assinou um documento e passou o terreno para Teófilo. E isso não mudou nada, porque o outro também não se interessou pela terra. Queria só ter a posse. 
 
– Isso não está me cheirando bem – disse Biliu. – Não tem terra tão pequena que não se possa medir sete palmos. 
 
– Não foi o caso – disse Bastinho. –  Mas Bezerrão morreu, teve um colapso. Algum tempo depois Teófilo morreu também, quando bateu numa vaca com a camionete, na estrada para Tabira. E quando foi alguns anos atrás, surgiu uma questão na terra, porque o governo queria desapropriar um trecho, essa coisa de sempre. Quem era o dono? 
 
– O dono não já era Teófilo? – perguntei. 
 
– Era o que as duas famílias sabiam, mas quando foram atrás do documento... Primeiro remexeram a casa toda pra poder achar, porque as coisas do velho Teófilo eram uma zona total. Acabaram achando, um envelope grande, sujo, amassado, enfiado numa Bíblia sem capa. E aí começou o problema. Eles viram que a Bíblia pegou uma chuva ou alguma coisa assim, e se molhou, e o envelope também. 
 
– Apagou a tinta toda – disse algum sádico. 
 
– Não chegou a isso, mas perdeu-se a assinatura de Bezerrão, o pedaço de baixo do documento se desmanchou. Ficou só o termo de posse, numa caligrafia que talvez fosse de minha avó, mas enfim, todo mundo já na cova... e um documento que parecia de verdade, mas incompleto. 
 
– Mas se as famílias conheciam a história, não haveria problema – disse eu, sempre conciliador e otimista. 
 
– Por meu pai e por nós não haveria – disse Bastinho. – Mas um primo meu entrou na justiça, e tirou não se sabe de onde uma versão de que Bezerrão tinha dado a terra ao pai dele, também já morto. Isso envergonhou nossa família, mas era palavra contra palavra. 
 
– E um documento sem assinatura. 
 
– Isso mesmo. O juiz era gente boa, mas explicou: estava com as mãos e os pés atados, por falta de uma evidência concreta. 
 
– E então... chegou alguém e falsificou a assinatura – sugeriu alguém. 
 
Bastinho encrespou-se: 
 
– Você está pensando o quê?!  Minha família é pobre mas tem honra. 
 
– Metade disso é verdade – disse Biliu. 
 
– E como ficou o caso, então? 
 
– Fomos pra Imaculada. Eu, meu irmão Paulinho, e minha irmã Dionéia. Nos reunimos com os netos de Teófilo, um pessoal bacana, pessoal educado, mas sem mentalidade prática, sem muito traquejo pra sair desse tipo de situação. Chegamos lá de tarde, tivemos uma conversa, jantamos, depois do jantar sentamos todos na mesa e eles trouxeram o documento. Envelope antigo, papel antigo, tinta desbotada, e meio palmo da folha se esfarrapando, no lugar onde tinha a assinatura. E foi nesse momento, modéstia à parte, que eu percebi uma coisa. 
 
Um carro passou diante do abrigo, tocando um forró em toda altura, mas afora isso não se escutava um pio naquela roda. 
 
Bastinho contou, caprichando no gestual com mãos e dedos: 
 
– Eu pedi o documento... segurei, assim... levantei... olhei de encontro à luz elétrica... parecia tudo normal. Eu estava até emocionado, porque disseram que era a letra de minha avó, que eu nem conheci. Mas aí, sabe o que eu vejo? Junto da data, logo na cabeça da folha, tinha uma mancha que me chamou a atenção. Botei a folha na mesa, alisei ela, assim. Era uma mancha de goma arábica. 
 
– Goma arábica – repetiu alguém, baixinho. 
 
– E pregada nela, sabe o quê? – Ele ergueu no ar o polegar e o indicador, fingindo que segurava um fragmento invisível. – Um cabelinho. Pregado no papel com goma arábica! Era um fio de barba de Bezerrão. Assinatura de sertanejo antigo; por via das dúvidas. 
 
Novo silêncio, mas fervilhante de hipóteses mentais. 
 
– E aí? – disse eu. 
 
– Aí?  Aí, nada – disse Bastinho, despreocupado, enquanto enchia o copo de novo. – Teste de DNA, assunto resolvido, o juiz aceitou o documento, meu primo botou o rabo entre as pernas, e entrou por uma perna de pato, saiu por uma perna de pinto. 
 
– Foi muita sorte – comentei. – Muita sorte do fio de barba não ter se perdido, e de você ter percebido que ele estava ali. 
 
– Foi sorte, mas foi também inteligência – replicou Bastinho, satisfeito, alisando maquinalmente o frondoso bigode grisalho. – Só acha quem procura. 
 
– Ou quem botou – disse Biliu baixinho, mas nesse instante o carro do forró passou de novo e acho que só quem escutou fui eu. 

 


(Biliu de Campina)






domingo, 12 de maio de 2024

5061) Roger Corman, 1926-2024 (12.5.2024)



 
Poucos cineastas dos EUA me despertam tanta simpatia quanto Roger Corman, falecido esta semana, aos 98 anos. E isto sem ele ter dirigido uma obra-prima sequer, sem nunca ter feito um filme que me produzisse uma impressão profunda. Gosto dos filmes dele, em geral, mas se eu fizesse uma dessas listas de Meus 100 Filmes Preferidos não creio que nenhum deles fosse incluído. 
 
Corman foi diretor, produtor, roteirista, e acima de tudo um apaixonado pelo ofício de fazer e exibir filmes. Há muitos cineastas que têm vontade de dirigir um filme, mas só presta se for um grande filme, um filme admirável, um filme que abale as estruturas... Não era o caso dele. Avaliando sua própria obra, ele vê nela títulos que vão de “ótimo” a “constrangedor”, mas nunca pede desculpas ou se arrepende dos filmes ruins que fez. Por que? Acho que talvez ele dissesse que cinema é como basquete ou beisebol. Num dia você sai ganhando, no outro sai perdendo, o importante é não parar de jogar. 



Filmar era uma espécie de esporte coletivo para Corman, um cara inquieto, sorridente, brigão, extrovertido, arregimentador de pessoas, resolvedor de problemas. Não tinha preconceitos intelectuais, o que significa que podia fazer um filme de tremenda apelação comercial e depois um filme inspirado em Freud, e ver os dois resultados com a mesma empatia. 
 
Se eu tivesse mesmo que escolher algo dele, ficaria com a série de filmes que ele fez usando a obra de Edgar Allan Poe: House of Usher (1960), The Pit and the Pendulum (1961), The Premature Burial (1962), Tales of Terror (1962), The Raven (1963), The Haunted Palace (1963), The Masque of the Red Death (1964) e The Tomb of Ligeia (1964). 




A obra literária de Poe, nesses filmes, passou na esquina e deu tchau. Corman aproveita apenas o título, alguns personagens e situações, e constrói com eles um gênero que eu classifico como “Terror Ornamental”, ou seja, é um filme fantasiado de filme de terror. Não tem a intenção de aterrorizar, apenas de usar os clichês e as convenções do gênero para divertir o público. 
 
Em seu ótimo livro de memórias, How I Made A Hundred Movies in Hollywood And Never Lost a Dime (Da Capo Press, 1998; lançado em 1990), ele narra como seus filmes de baixíssimo orçamento eram feitos. Por exemplo: ele tinha uma verba de 20 mil dólares para cenários, os quais, depois do filme, ficavam guardados no estúdio. Como o filme seguinte começava a ser rodado logo depois (confiram as datas aí em cima), ele somava a nova verba para cenários aos cenários do filme anterior (colunas, arcadas, salões, escadarias, torres de castelo, etc.). E a cada novo filme esses cenários iam se acumulando, de modo que a cada filme a produção parecia ser mais cara, quando na verdade cada um tinha sempre a mesma quantia. 




Stanley Kubrick era famoso por mandar repetir um take cem vezes até ficar satisfeito; nesse mesmo período de tempo Corman rodaria um filme inteiro. Ele era o cara que levava uma equipe de cinco técnicos e cinco atores para fazer um filme de terror em 8 dias, num casarão abandonado. No fim de cinco dias o filme estava rodado e ele dizia: “Vamos aproveitar e fazer outro?!”  Escreviam o novo roteiro em uma noite, e começavam a filmar na manhã seguinte. 
 
Corman foi, de certa forma, um cineasta brasileiro. Sustentou sua barraquinha dentro do estômago do Leviatã de Hollywood. Talvez a única diferença em relação aos nossos udigrudis seja a sua ausência de pretensões intelectuais, de política revolucionária. Ele fez filme policial, de terror, filme de motoqueiro, filme de sacanagem, filme de monstro, sempre com um olho na bilheteria e outro na platéia. E era um homem inteligente, com leituras variadas. 



Um dos seus melhores filmes, para mim, é O Homem dos Olhos de Raios-X (1963). Aliás, não só para mim, mas para meu parceiro Lenine, que adora esse filme a ponto de ter feito uma música inspirada nele: 
 
https://www.youtube.com/watch?v=3JAokd455Vg
 
É a história de um cientista (Ray Milland) que adapta seus olhos para terem visão de Raio-X e depois, desorientado com tudo que vê, perseguido pela sociedade, acaba arrancando-os. O título foi-lhe dado de graça por Jim Nicholson (da AIP, American International Pictures). Corman diz: 
 
Ele é um cientista tentando deliberadamente desenvolver visão raio-X, ou visão expandida. Essa visão vai progredindo cada vez mais até que no fim ele tem uma experiência místico-religiosa, de poder enxergar o centro do Universo, ou o equivalente a Deus. (...) Personagens de muitos dos meus filmes usam óculos escuros: Paul Birch em Not of This Earth, e Xavier, Peter Fonda e Bruce Dern em The Wild Angels. Enxergar, olhos, visãoserá isto um tema que costura meus filmes, ou mera coincidência? Ou será que Prehistoric World é similar a Raio X e a The Trip no sentido de que mostram um homem disposto a explorar o que existe além do mundo visível, limitado?
(How I Made A Hundred Movies..., pág. 117-119, trad. BT)
 
É significativo que um filme de Corman nunca tenha ganho um prêmio importante, mas ele tenha recebido inúmeros prêmios como diretor e produtor. Sua contribuição não é através de obras de alto impacto, mas do impacto reiterado, diversificado, incessante, abridor-de-caminhos, de dezenas de filmes de baixo orçamento onde ele literalmente pegava uma câmera, chamava uma rapaziada e dizia “vamos ver o que sai daqui”. 



Pouco profissional? Não acho. Certa vez, Corman filmou no Sul do Pacífico (um “filme de avião”) sem perder um dia, mas uma equipe que chegou depois da dele enfrentou chuvas torrenciais. Ele explica que sempre teve consigo manuais de pilotos de companhias aéreas, sempre atualizados, indicando as probabilidades de chuva. Quando seu amigo Francis Coppola anunciou que estava indo filmar Apocalypse Now nas Filipinas, ele foi o único a avisar: “Cuidado, a estação das chuvas lá é de maio a novembro.” Não deu outra. 
 
E ainda assim, ele diz que quando estava filmando histórias de aventuras aéreas o roteiro era dividido em três partes: Dia Azul, Dia Nublado e Dia Qualquer Coisa. E se defende: 
 
Eu tinha sete combates aéreos para filmar, e esses livros eram minha bíblia. Quem foi que disse que as batalhas da I Guerra só ocorriam em dia de sol? Ninguém ficava esperando por uma “luz boa”. Mas eu tinha que manter a consistência num mesmo combate, e usávamos os livros para segurar a continuidade. O Dia Qualquer Coisa era para os combates que começavam com céu azul, digamos, e os aviões voavam para dentro das nuvens. Nunca perdi um dia de filmagem, a não ser quando choveu.
(pág. 173) 



 
Sua esposa desde 1970, Julie Halloran, dizia:
 
Na primeira vez em que saímos para jantar, ele disse: “Estou super-ocupado agora, mas em duas semanas minha vida vai estar sob controle novamente.” E isto tem sido a vida da gente desde então. A única coisa que varia é o período em que ele acha que vai ter a vida sob controle de novo; nunca é menos que uma semana, nem mais do que um mês. Mas ele está sempre super-ocupado. 
(pág. 232)
 
Corman definia seu próprio estilo com precisão, sem modéstia, sem empáfia:
 
Com esses filmes eu consegui reunir alguns dos elementos definitivos do meu estilo: enredos surpreendentes a partir de premissas um tanto macabras; cortes rápidos, câmera fluida e móvel; composição visual usando a profundidade de campo; personagens pouco convencionais, bem esboçados; e boas interpretações do elenco dos “Atores Corman”. 
(pág. 62)
 
Diz-se por aí que cada grande cineasta trouxe para o cinema alguma coisa que só ele poderia ter trazido, e ninguém mais. Corman nunca fez grandes tentativas de adentrar o majestoso salão do Cinema de Arte. Foi sempre o artista de rua que fica entretendo o pessoal da fila, enquanto os portões do Big Show não se abrem, e muitas vezes se torna a lembrança mais vívida que aquele público vai levar para casa ao fim da noite. 




Quando estava se preparando para filmar The Trip (o famoso filme em que Peter Fonda experimenta LSD), Corman decidiu experimentar a droga ele próprio. Ele comenta: “Eu sempre andei com uma turma de malucos, e sempre fui o mais careta da turma”. Ele chamou seus melhores malucos e os levou para um parque, perto de uma cachoeira.
 
Resolvi ficar deitado. E então o ácido bateu. Passei as sete horas seguintes de rosto para baixo, no chão, embaixo de uma árvore, sem me mexer, absorvido pela viagem mais maravilhosa que se pode imaginar. Entre outras coisas, tive ali a certeza de ter inventado uma nova forma de arte. Essa nova forma era o mero ato de pensar e de criar, e ninguém precisaria de livros ou de filmes ou de músicas para comunicá-la; qualquer um poderia simplesmente deitar no chão, em qualquer lugar, de rosto para baixo, e a obra de arte seria transmitida através da Terra, da mente de seu criador diretamente para a mente do público. Até hoje acho que isto poderia funcionar, e seria uma coisa maravilhosa. Pense nos custos que poderíamos economizar somente com produção e distribuição!
(pág. 146)





 
 




quinta-feira, 9 de maio de 2024

5060) O poder da palavra escrita (9.5.2024)




A palavra escrita assume às vezes funções que só podemos chamar de “mágicas”, mesmo admitindo que nada têm de espiritual ou sobrenatural. 
 
Um Antropólogo Marciano que visitasse nosso planeta talvez achasse curiosa a importância que damos à assinatura de uma pessoa. Ele entenderia que o indivíduo está escrevendo seu próprio nome, mas, que poderes mágicos esse nome transporta para o papel, no instante em que é escrito? 
 
Podemos explicar ao Antropólogo Marciano que o ato de escrever o próprio nome cria uma ligação de responsabilidade, um vínculo moral e social entre o signatário e o que está escrito no papel. Ele pode perguntar: “Mas não bastaria uma afirmação em voz alta?”. 
 
De fato. Algumas sociedades sobreviveram séculos sem chancela e cartório, baseando-se apenas nessas tais afirmações em voz alta. Não são apenas os nativos da África ou os índios da Amazônia. É o velho conceito sertanejo da “palavra dada”. 
 
Não só sertanejo, claro, mas foi através dos sertanejos que entrei em contato com esse tipo de magia verbal, que já fez muitos homens perderem tudo, inclusive a vida, para não se submeterem à vergonha de “quebrar a palavra dada”. 




Meu pai recitava versos de um desafio antigo entre uma cantadora, Zefinha do Chabocão, e o violeiro Jerônimo do Junqueira, versos resgatados por Leonardo Mota. Ela lhe pergunta “o que é mais duro que ferro”. O poeta responde: 
 
Zefinha, a tua pergunta
é fácil até por demais:
o que é mais duro que ferro
e nenhum ferreiro faz,
é a palavra do homem,
inda que seja um rapaz!
Trinca o ferro, e se arrebenta;
e o homem não volta atrás! 
 
A palavra escrita, contudo, entrou na civilização humana como um maremoto, que não apenas tem força propulsora, mas acaba sempre encontrando alguma brecha por onde passar. 
 
Existe o caso dos papéis escritos que são guardados por sua força afetiva, força simbólica. Ariano Suassuna conservou, durante a vida inteira, a última carta escrita por seu pai, João Suassuna, avisando à família que estava jurado de morte mas era inocente de participação no assassinato de João Pessoa, cometido por seu primo. Levava-a no bolso do paletó, em muitas ocasiões. 
 
O físico Richard Feynman, ainda jovem, perdeu a esposa para a tuberculose, quando trabalhava no Projeto Manhattan. Escreveu uma carta para ela, em desabafo, onde terminava dizendo: “Não sei por que estou escrevendo para você, por que estou escrevendo isto, porque minha esposa, que eu amo tanto, está morta.” Essa carta, que ele nunca mostrou a ninguém, foi achada entre seus papéis, amassada e mil vezes relida, depois que ele morreu. 
 
Casos assim são comoventes, mas o papel escrito, em tais exemplos, faz parte da cultura das pessoas, é uma coisa comum em suas vidas.
 
Muito diferente é a relação de culturas não-escritas (a dos nativos africanos do século 19, por exemplo) com a cultura da palavra escrita (a dos brancos europeus).



Karen Blixen (“Isak Dinesen”) conta em seu Sombras na Relva que, durante os seus anos como fazendeira no Quênia, fez uma visita à sua terra natal, a Dinamarca. Como era baronesa, levou uma pele de leão, de um tipo raro de leão africano, para presentear o Rei Cristiano X. E algum tempo depois o rei escreveu-lhe uma carta, agradecendo o presente, que ela não pôde entregar em pessoa. 
 
E ela diz:
 
Uma carta de casa sempre significa um bocado para as pessoas que estão vivendo há muito tempo longe de seu país. Será levada no bolso por vários dias para de vez em quando ser lida mais uma vez. Uma carta de um rei significa mais do que outras cartas.
(Sombras na Relva, Ed. 34, 1992, trad. Maria Luiza Newlands, pág. 46ss)
 
E ela conta que um dia um nativo kikuyu de sua fazenda sofreu um acidente grave; teve a perna despedaçada pela queda de uma árvore, e estava sofrendo dores intensas. Enquanto outras pessoas iam em busca de socorro, ela ficou cuidando do rapaz, que gritava muito e lhe pedia alguma coisa que amenizasse a dor. E ela teve uma idéia.
 
– Sim, Kitau – disse eu – tenho alguma coisa mais. Tenho algo mzuri sana – verdadeiramente excelente. Tenho uma Barua a Soldani, uma carta de um rei. E isto é uma coisa que todo mundo sabe, que uma carta de um rei, mokone yake – de sua própria mão – acabará com qualquer dor, mesmo muito forte. 
 
Ela tira a carta do bolso e a coloca sobre o peito do rapaz, segurando-a ali, com alguma solenidade.
 
Foi algo de muito estranho que quase de imediato as palavras e o gesto parecessem provocar um efeito nele. Seu rosto terrivelmente retorcido distendeu-se, ele fechou os olhos. Pouco depois olhou de novo para mim. Seus olhos lembravam tanto os de uma criança pequena que ainda não sabe falar que fiquei quase surpresa quando ele falou comigo. “Sim,” disse ele, “é mzuri,” e mais uma vez, “é mzuri sana. Não tire ela daí.” 
 
E o fato é que a dor do rapaz diminui, mas o boato se espalha entre os nativos. E daí em diante todas as vezes em que alguém na fazenda ou nas tribos próximas tem uma doença grave, eles mandam pedir emprestada a Barua a Soldani, e a baronesa viu-se forçada a criar uma bolsinha de couro, presa a um cordão, para proteger a carta do rei durante tanto manuseio. 
 
Placebo? Auto-sugestão? Provavelmente, e não tirarei a razão de quem argumentar que qualquer pedaço de papel teria servido, desde que oferecido com o mesmo fervor e a mesma sinceridade. 
 
É bom ter em mente, contudo, que sociedades ágrafas veem o “papel escrito” de uma maneira diferente da nossa. Uma vez tendo compreendido sua função, sua utilidade e seu valor, os nativos estabelecem – ou pelo menos os nativos da fazenda Mbogani o fizeram – uma relação muito especial com ele. 




Em A Fazenda Africana (Círculo do Livro / Civilização Brasileira, s/d; trad. Per Johns), Karen Blixen narra o episódio de Jogona, um nativo kikuyu que não sabia ler nem escrever, de quem ela precisou copiar uma declaração, para esclarecer uma questão relativa a um acidente com arma de fogo. Blixen copiou fielmente o relato labiríntico de Jogona, cheio de idas e vindas; e depois o leu em voz alta, para aprovação do homem. 
 
Quando cheguei ao trecho em que seu próprio nome era mencionado, “e ele mandou chamar Jogona Kanyagga, que era seu amigo e morava nas proximidades”, suavemente ele se voltou para mim com um olhar que flamejava num sentimento triunfal, tão exuberante de alegria que transformou o velho num menino, no próprio símbolo da juventude. (...) Esse foi o olhar que Adão dirigiu ao Senhor quando Ele o formou do pó e insuflou em suas narinas o sopro da vida, transformando-o numa alma vivente. (p. 109) 
 
Jogona passou a considerar aquele papel escrito uma espécie de talismã, e o levava ao pescoço, dobrado, numa bolsinha de couro. E de vez em quando, ao encontrar nas colinas a dona da fazenda, pedia-lhe que parasse um instante... e lesse o documento de novo. 
 
A cada leitura, seu rosto adquiria uma expressão de invariável e profundo triunfo religioso, e após a leitura alisava o papel, dobrava-o e voltava a colocá-lo na bolsa. A importância do documento não diminuiu mas aumentou com o tempo, como se para Jogona o mais incrível de tudo fosse que ele não se modificava. (p. 112) 
 
Os nativos vivem num mundo flutuante, evanescente, gasoso, em que uma história precisa ser recontada milhares de vezes para que nunca se perca, pois não há como gravá-la na matéria. Descobrir um tipo de registro que não se altera é para eles – ou pelo menos o era para o velho Jogona – quase um milagre. Algo como ver no céu uma nuvem parada e que não mudasse nunca. 
 
Claro que todos nós, modernos de hoje, leitores do filósofo Heráclito e de Jorge Luís Borges, sabemos que um texto escrito nunca é o mesmo a cada leitura. Mas aí já é outra história. 

 
 
 
 



segunda-feira, 6 de maio de 2024

5059) O falatório nordestino (6.5.2024)




(Corbiniano Lins, "Monumento aos Pioneiros", Campina Grande)

Acho oportuno lembrar que estas minhas compilações de palavras e expressões não têm o objetivo de afirmar que elas têm origem no Nordeste, ou na Paraíba, etc.  São expressões da minha linguagem afetiva, que ouvi pela primeira vez na infância ou adolescência, e depois descobri serem um tanto raras, principalmente na linguagem escrita. Claro que não são exclusividade do Nordeste. Fazem parte de um Nordeste que é só meu, mas que me dá prazer compartilhar com quem se interessa. 
 
 
Às folhas tantas
Expressão usada, geralmente pelas pessoas mais velhas, para dizer: "em dado momento...  foi então que..."  Entra na narrativa para indicar um sentido de passagem de tempo, de que houve uma certa duração entre o que houve antes e o que vai ser narrado a seguir.   "Eles entraram no bar e ficaram conversando, comeram alguma coisa... Às folhas tantas, Fulano tocou no assunto do pedido de emprego."    
 
Imagino que há uma relação com a expressão muito frequente no linguajar dos cartórios: "Está registrando no Cartório Tal, livro 16, às fls. 27-28..."    Neste caso, a intenção é apontar um local preciso, enquanto a expressão anterior simplesmente indica transcurso de tempo.  Eis um exemplo típico de como uma utilização pode ter acabado dando origem à outra: 
 
Até dois amigos mais íntimos de Mary McCarthy se surpreenderam com suas maravilhosas (e mal organizadas) memórias, ao contar que chifrou fartamente todos seus conhecidos amantes e maridos.  Às folhas tantas se pergunta se é promíscua, porque dormiu com quatro homens no espaço de tempo de 24 horas. 
(Paulo Francis, O Globo, 29-6-1995) 
 
 
Deforeta
“Tomar uma deforeta” (pronúncia: "deforéta") é dar uma relaxada, descontrair um pouco, descansar, ir à janela ou ao terraço para respirar um pouco de ar puro.  “Faz três horas que a gente está pegado com esse trabalho...  Vamos dar uma paradinha e tomar uma deforeta, daqui a pouco a gente volta.”   Quando éramos garotos, minha irmã Clotilde sentenciava: “Deve ser uma corruptela de diaforético”.  Indagada sobre o que seria isso, ela respondia: “Não sei, mas parece nome de remédio”.  Na verdade, "diaforético" diz-se de algo que provoca a transpiração.  Variante: "deforéte". 
 
O senhor de engenho, por sua vez, estagnava na rotina e na indolência.  Sair da rotina era coisa que parecia exceder de todo a sua capacidade de ação.  A indolência do corpo não era menor que a do espírito.  Durante o dia tirava largos deforetes na rede da sala ou, deitado sobre montes de bagaço, espiava pachorrentamente o engenho moer. 
(Horácio de Almeida, Brejo de Areia, pag. 106) 
 
 
Pabulagem
Jactância; hábito de contar vantagem.  “Não venha com pabulagem não, que todo mundo aqui sabe que você é muito do mentiroso”.  Existe o verbo “se pabular”: “O papo estava até bom, mas depois de uma certa hora Fulano começou a se pabular, contando riqueza, aí eu enchi o saco e vim embora”. 
 
De que serve o senhor se pabular
que só conta grandeza e valentia
já mostraste a tua covardia
e vai correndo com medo de apanhar
se fugires, eu corro até pegar
a minha volta ninguém se livra dela
com uma mão no peito e outra na goela
mas se o bruto salvar-se dessa vez
eu pego ele, tranco no xadrez
e o Pelado servirá de sentinela. 
(João Martins de Athayde, Peleja de João Athayde com Raimundo Pelado do Sul
 
Vai dormir, que teu mal é sono
Expressão brincalhona que se usa em várias ocasiões: quando a pessoa está de fato sonolenta; quando está de mau humor, sem motivo; quando está perturbando o sossego dos outros.  "Cala essa boca, menino, deixa a gente acabar de ouvir a história!  Vai dormir, que teu mal é sono!" 
 
Já peguei Josué na Catingueira
uma noite de São João numa novena
meia-noite o rapaz fazia pena
deu-lhe frio levantou-lhe até coceira
quis meter-se debaixo da fogueira
ficou logo sem sentidos, descorado
não podia estar em pé e nem sentado
eu lhe disse: "vá dormir, seu mal é sono
vá sabendo, no sertão só tem um dono
é Carneiro, este velho seu criado." 
(João Martins de Athayde, Peleja de Serrador com Carneiro) 
 
“Mulher, vem pra dentro que teu mal é sono!  Vem, pra dentro,
vem!  Vem, que teu mal é sono, e o meu também!” 
(Ariano Suassuna, A Farsa da Boa Preguiça, Ato I) 
 
 
Todo mundo quer ser bom, e a lua falta um pedaço
Equivale a: "Não há quem não tenha algum defeito".  Observe-se que a grafia mais correta será com acento grave: "...e à lua falta um pedaço".  Há variantes, como: 
 
Na propriedade alheia
outro de fora não manda.
Todo mundo quer ser bom
a lua falta uma banda.
E um dos meus carneirinhos
quem sabe em que lugar anda! 
(Severino Pinto, cit. em Um século e meio de repentes, de Edvaldo Muniz de Melo, pág. 97)
 
 
Não se cresça!
O mesmo que “Não se atreva!  Não se meta a besta!”  Usa-se geralmente no imperativo.  “Olhe, Fulano, você não se cresça comigo não, porque amizade tem limite.” 
 
Dizia o príncipe ao anão:
Vou abrir sua cabeça,
O anão dizia: príncipe
É melhor que se esmoreça
Se renda logo à prisão
Fique calmo e não se cresça
(Minelvino Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino Encantado”, em Minelvino Francisco da Silva, pag. 102)
 
Pegado
Vizinho; diz-se de moradias. “Eu estou indo morar pegado com a casa de Seu Fulano”.  Variante: “encostado”. 
 
-- Essas duas casas são pegadas ao casarão onde o senhor mesmo mora?
-- São sim senhor!
-- É verdade que elas se comunicam por portas internas?
-- É sim senhor!
-- Sua casa é pegada, pelo outro lado, ao prédio da Biblioteca que o senhor dirige?
-- É sim senhor!  A Biblioteca fica na esquina.  Depois, do lado direito e pegada com a Biblioteca, fica minha casa.  Depois, pegada à minha pelo lado esquerdo, vem a casa do Professor Clemente.  E finalmente, pegada à de Clemente, fica a casa do Doutor Samuel. 
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, pag. 272)
 
Olhe a boneca!
Exclamação de zombaria que se usa quando alguém vem nos anunciar uma novidade que já é do conhecimento de todos.  “-- Minha gente, vocês não sabem da maior...  O Papa morreu!  -- Olhe a boneca!   Deu na TV faz mais de meia-hora.”   Vem acompanhada de um gesto -- a pessoa que dá a resposta agarra um pedaço de pano, geralmente da própria roupa, e o exibe ao “dono da novidade”, como se mostrasse uma boneca.
 
 
 





sexta-feira, 3 de maio de 2024

5058) A série "Ripley" (3.5.2024)



 
O que nos faz torcer pelo criminoso, em tantos romances e tantos filmes? Em tese, nosso anjo-da-guarda politicamente correto nos deveria obrigar a torcer contra ele, acompanhar seus crimes mas querer vê-lo sendo levado à delegacia, à masmorra ou à cadeira elétrica. E no entanto há tantas histórias de crime em que a narrativa acompanha as peripécias do assassino e de repente estamos nervosos, torcendo as mãos, ansiosos para que ele escape. 
 
Deve ser uma versão contemporânea do mandamento de Santo Agostinho: “Odiar o pecado, mas amar o pecador”. 
 
Raymond Chandler tinha uma palavra arguta sobre esta questão, mesmo encarando-a do ponto de vista reverso: “Por que ficamos nervosos quando a protagonista corre perigo, se já sabemos que ela não vai morrer?”.  Diz ele, nos “Adendos” de “Doze Anotações Sobre a Narrativa de Mistério” (texto incluído em A Dama do Lago, Ed. Alfaguara, 2014, trad. BT): 
 
Como já foi sugerido acima, todas as ficções dependem do suspense, seja de que modo for. Mas o estudo da mecânica desse tipo extremo chamado menace, ameaça, perigo, revela a curiosa dualidade psicológica na mente do leitor ou de uma platéia mediante a qual, por um lado, é possível estar aterrorizado pelo que pode haver do outro lado da porta e ao mesmo tempo saber que a heroína ou a protagonista não vai ser morta, visto que é a heroína ou a protagonista. Se uma personagem interpretada por Claudette Colbert está passando um espantoso perigo, temos certeza absoluta de que Miss Colbert não vai se machucar pela simples razão de que é Miss Colbert.  Como é possível, então que a mente da platéia tenha medo real da ameaça, sabendo destes fatos notórios?  
 
Entre as muitas respostas possíveis, eu proponho duas. Nossas reações ao som e às imagens visuais, ou a sua evocação por descrições verbais, independe da nossa razão. O elemento primitivo do medo nunca está distante da superfície dos nossos pensamentos; qualquer coisa que conseguir desencadeá-lo pode suplantar temporariamente a razão.  Daí que os filmes de menace concentram seu apelo sobre essa emoção tão antiga e tão irracional.  Poucos homens estão livres de sua influência.  
 
A outra resposta que sugiro é que em qualquer espécie de projeção, seja ela literária ou de outro tipo, a parte é maior do que o todo. A cena que está diante dos olhos domina o pensamento da audiência; o indivíduo normal não faz nenhuma tentativa de conciliar isto com outros aspectos da história.  Ele é arrastado pelo que acontece naquela cena. Quando você termina de ler o livro, ele pode, mas não necessariamente, ser focalizado como um todo e ser lembrado pelos seus méritos quando visto assim; mas no momento da leitura, o capítulo é o fator dominante. A visão da imaginação emotiva é muito curta mas também muito intensa. 


 
Esta é uma das razões que nos levam a torcer por Tom Ripley, o assassino criado por Patricia Highsmith, resgatado agora numa ótima série da Netflix, em oito episódios. O diretor e roteirista Steven Zaillian, tem um respeitável currículo de roteiros: A Lista de Schindler (de Steven Spielberg), Tempo de Despertar (Penny Marshall), Gangs de Nova York  e O Irlandês (Martin Scorsese), Millenium – Os Homens que não Amavam as Mulheres (David Fincher), etc.
 
Esta parece ser a quarta adaptação deste romance; Ripley já foi vivido na tela por Alain Delon, Matt Damon e John Malkovich. Procurarei não dar grandes spoilers: é a história de como Tom Ripley, um jovem novaiorquino na pindaíba, é mandado para a Itália com a missão de trazer de volta à família um jovem playboy rico. Ele se deslumbra com a boa-vida do outro, e começa a urdir o plano de matá-lo e assumir sua identidade. 



Ripley deveria ser assistido pela maioria das pessoas que fazem filmes de crime e violência. Ele tem violência – os assassinatos são cometidos de forma brusca, fria, sem gritaria, sem espalhafato. Essa secura ressalta mais a violência do ato homicida do que os crimes cinematográficos que a gente vê por aí, cheios de acrobacias, close-ups de corpo humano sendo explodido / baleado / esfaqueado / etc., sangue em abundância, gritos, imprecações... Em Ripley, basta menos de um minuto para matar uma pessoa. E as consequências da violência vêm depois: a odisséia, ou a via-crucis, do assassino para se livrar do corpo e das provas. 
 
Quanto ao suspense, ele nasce da nossa intimidade psicológica com o assassino, mesmo sendo ele a máscara impassível que Andrew Scott (“Ripley”) cria com perfeição. O roteiro usa (isto vem do romance, claro) o efeito da “onisciência do espectador” – nós sabemos algo que os personagens não sabem (que uma pessoa está se fazendo passar por outra). E o suspense, em circunstâncias assim, nasce da nossa capacidade de prever ou de temer catástrofes que podem acontecer de um momento para outro, em função de algum detalhe insignificante. 


 
A ambientação “noir”, através da fotografia em preto e branco, traz à mente, nas cenas noturnas, filmes clássicos como O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed ou O Processo (1962) de Orson Welles. É o lado metafísico do noite, a onipresença da ameaça, da incerteza, do mistério e do perigo. O episódio 1 sugere as conotações sociais do cinema “noir” norte-americano, que surgiu com a sensação de fim-do-mundo da Grande Depressão. Ambientada em 1961, a narrativa explora esses homens comuns levados ao crime pela sobrevivência, pela ambição ou por uma fatalidade a que eles se entregam sem questionar. 
 
O filme, porém, tem também outro lado: o branco intenso das casas caiadas, a luz cegante do Mediterrâneo, americanos moderninhos e endinheirados cruzando aqueles enclaves de arquitetura anacrônica, com suas escadas escherianas e intermináveis. 




Ripley é mais uma volta da espiral romanesca em torno de parelhas de elementos sempre em atração mútua e sempre em conflito: Estados Unidos e Europa, por exemplo, em que o chamado Velho Continente vê-se alegremente invadido por turistas ianques cheios de dólares, e reduzido a uma espécie de parque temático da Cultura Universal. 
 
Outra parelha de elementos em conflito é “Arte vs. Crime”, que o roteiro (ou terá sido o romance?) fixa na figura de Caravaggio, o pintor genial que era também assassino. Dickie (Johnny Flynn) explica a história dele para Ripley, ganhando para sempre a admiração deste para com a obra do italiano. Se Thomas de Quincey se atrevia a considerar o assassinato como uma das Belas Artes, não é impossível que na mente silenciosa de Ripley já circulassem, a partir daqueles dias, noções de que ele tinha mais condições de ser um artista do crime do que Dickie de ser um artista da pintura. 




O crime neste filme é mais cruel por ser a vítima uma pessoa mais inofensiva e mais simpática do que a vítima de O Sol por Testemunha. O playboy vivido por Maurice Ronet trata Alain Delon de maneira humilhante e meio sádica de vez em quando. 
 
Há um subgênero do romance policial que nunca foi formalmente definido pelos críticos, mas que eu classificaria como O Crime Que Não Dá Certo. São aquelas histórias em que uma pessoa comete um crime (geralmente um assassinato) sem planejar direito, e daí em diante tem que fazer mil malabarismos para livrar-se do cadáver, destruir pistas, improvisar um álibi, explicar mil pequenos detalhes em que não havia pensado... 
 
Os crimes desse tipo não precisam necessariamente ser impulsivos, não-planejados – há uma variante que consiste em vermos um crime ser minuciosamente planejado com antecedência, e depois vamos acompanhar sua execução; neste caso, em geral é um roubo de cofre, assalto a banco, etc. E quando aquilo começa a acontecer de verdade nós, que sabemos como é o plano, somos capazes de perceber o que não está funcionando direito, as interferências que surgem de surpresa, e por aí vai. 
 
Em Ripley, os crimes não chegam a ser planejados em detalhe, e sua execução se dá simplesmente porque se Ripley não matasse a vítima ali, todos os seus planos de boa-vida financeira desabariam. O crime acaba sendo mal feito, improvisado, desajeitado, cheio de buracos e contradições, espalhando pistas pelo caminho... 
 
Ficamos torcendo pela teimosia obcecada de Ripley, um homem que revela pouco, e que a câmera perscruta o tempo inteiro, como se quisesse extrair a fórceps as suas intenções e os seus raciocínios. Quando ele está pensativo e de repente dá um pulo da cadeira, o filme dá um pulo junto com ele, porque sabemos que ele teve uma idéia ou lembrou de um detalhe de-vida-ou-morte. 



(Johnny Flynn, como “Dickie”, e Dakota Fanning, como “Marge”)

 
O elenco é ótimo. Se há uma coisa que me icomoda na maioria das séries em streaming é o que o pessoal chama de “overacting”, o excesso de interpretação por parte dos atores: olhos arregalados, gestos enfáticos com as mãos, arquejos, sobressaltos. O elenco da série se encaixa no papel de cada personagem: “Dickie” é descontraído, meio blasé, meio mimado, no fundo um playboy que não é totalmente bobo, sabe que não tem nada de artista, mas resolve aproveitar a vida e, afinal, nem todo mundo pode ser um Caravaggio, certo? 



(Elliot Sumner, como “Freddie”)

A namorada Marge (Dakota Fanning) é uma pequena esfinge retraída e desconfiada, ou talvez seja assim a partir do momento em que Tom Ripley entra na vida do casal. Ela olha tudo, com olhos amplos que não perdem um detalhe, e não comenta nada. Muito parecida é a intensidade de Elliot Sumner (Freddie), uma figura andrógina e perigosa capaz de desestabilizar mesmo a frieza de Ripley. Algo parecido pode-se dizer do ótimo Maurizio Lombardi que faz o inspetor de polícia: seus diálogos com Ripley e com Marge são verdadeiras sessões de pôquer em que cada um olha o outro, olha as cartas na mão, e continua impassível, sem mexer um músculo.



(Mauricio Lombardi, “Inspetor Ravini”)
 
Todo bom roteiro dá material-de-atenção para a câmera e para o elenco. Aqui, há a presença muda de objetos que parecem não dizer nada e dizem muito. As incontáveis estátuas de anjinhos barrocos e de tragédias em mármore. Os labirintos das ruelas medievais, onde nunca se sabe o que vai se ver daqui a dez metros. A caneta, o anel, a máquina de escrever. O gato. A echarpe. O roupão bordô. O cinzeiro de vidro. 


 
(Andrew Scott, “Tom Ripley”)