segunda-feira, 31 de março de 2025

5167) James Joyce, os vivos e os mortos (31.3.2025)





Os Vivos e os Mortos (“The Dead”, 1987) é um filme de John Huston, baseado no conto “The Dead” de James Joyce, em seu livro Dublinenses (1914; minha edição é Dubliners, Penguin Popular Classics, 1996). 
 
É a história de um jantar tipicamente irlandês, na Noite de Reis, na Dublin de 1904, entre família e amigos. Um jantar com música ao piano, dança, bebida (sem exagero), risadas, breves momentos de tensão (todo mundo querendo se comportar bem, e se esforçando para que ninguém estrague a festa). E, no final, um casal que sai da festa para um quarto de hotel, onde a esposa conta ao marido um episódio romântico e triste de sua juventude. 
 
É basicamente isto, mas é o suficiente para que muitos escritores e críticos considerem o conto “um dos melhores da literatura inglesa”, e o filme “um dos melhores da carreira de John Huston” (que fez o filme com 80 anos, e morreu antes da estréia). 
 
O filme é também um excelente exemplo de roteiro (por Tony Huston, filho do diretor) fidelíssimo ao texto literário original. 
 
A festa de Reis é chamada de “Epifania”, e o uso comum da palavra equivale a “revelação”, aquele instante em que alguém tem a percepção súbita de uma verdade oculta ou transcendental. Vai ser difícil encontrar alguma análise do conto de Joyce que não refira esta palavra. 



(Cathleen Delany, "Tia Julia"; Helena Carroll, "Tia Kate" e Anjelica Huston, "Gretta Conroy")
 

O personagem principal do conto é Gabriel Conroy, que vai com a esposa Gretta a essa festa anual de suas tias solteiras Kate e Julia Morkan, que vivem com outra sobrinha, Mary Jane. As três são instrumentistas, professoras de música, e as mais velhas formaram gerações de músicos, que as tratam com carinho e respeito. Nesse jantar anual, parentes, amigos e colegas se reencontram. 
 
Gabriel Conroy é um personagem movediço, cheio de boas intenções e de gestos impensados. Trata as pessoas de quem gosta com uma rudeza que parece não lhe pertencer, alimenta vaidades tolas, certezas reconfortantes, e medos sem razão. Toda a história do conto/filme é uma sucessão de equívocos seus com relação às mulheres que o cercam. 
 
Estes equívocos são breves interações que Conroy inicia com o melhor sorriso e a frase mais pronta, e das quais se retira minutos depois com o rosto ruborizado, a respiração opressa, perplexo ao perceber que está enraivecido e não sabe por quê. 
 
Conroy é um homem culto (resenha livros para um jornal de Dublin, onde o próprio Joyce colaborava), cosmopolita (gosta de viajar pela Europa), sincero (no conto, seus pensamentos de ternura e admiração pela esposa chegam a ser comoventes em alguns trechos). 
 
Ao mesmo tempo, é esnobe: desiste de fazer citações literárias em seu discurso-após-a-ceia porque acha que aquele pessoal não vai entendê-las, e envergonha-se da origem regional da esposa Gretta. 




Conroy é o típico “tiozão” simpático, adepto da conversa superficial e da repetição de clichês. Logo ao chegar na casa, ele troca breves frases com Lily, a criada, que ele conhece desde que era uma garotinha. 
 
-- Diga-me, Lily – disse ele num tom amistoso. – ainda está na escola? 
-- Oh, não, senhor – respondeu ela. – Terminei há mais de um ano. 
-- Oh! Então... – disse Gabriel alegremente – imagino que um belo dia estaremos indo ao seu casamento com um rapaz, hein? 
A garota olhou para ele por cima do ombro e disse com grande amargura: 
-- Os homens de agora só querem saber de conversa e do que podem conseguir com a gente. 
(p. 202, trad. BT)
 
A resposta inesperada da garota deixa Conroy desconfortável; ele volta a lembrar dela durante a noite. 
 
Logo a seguir, quando estão dançando quadrilha, ele faz par com uma antiga colega de faculdade, Miss Ivors. Ela é uma mulher desinibida, desenvolta, politizada, e começa a lhe dar alfinetadas, deixando-o silenciosamente amedrontado. Ela o critica por escrever resenhas literárias para um jornal que ela considera politicamente reacionário (simpatizante da Inglaterra, em detrimento da independência da Irlanda). 
 
Ele não sabia como reagir àquela acusação. Pensou em dizer que a literatura estava acima da política. Mas eles eram amigos há mitos anos, suas carreiras tinham corrido em paralelo, primeiro na Universidade, e depois como professores: ele não podia se arriscar a dar-lhe uma resposta presunçosa. Continuou piscando os olhos e tentando sorrir, e murmurou frouxamente que não via nada de político em resenhar livros. (pag. 214, trad. BT) 
 
Miss Ivors é diferente da esposa dele, Gretta, cuja família vem de uma província meio desvalorizada. (Quando alguém lhe pergunta se Gretta é de lá, ele responde defensivamente: “Os parentes dela são.”) O diálogo entre Conroy e Miss Ivors começa durante uma dança de quadrilhas, onde há troca de pares, e essa alternância de alfinetadas e interrupções é bem costurada tanto no texto quanto no filme. 
 
Miss Ivors inquieta Conroy com seu comportamento anti-convencional. A certa altura, ele está conversando com outra conviva e pensando nela: 
 
Enquanto sua língua tagarelava, Gabriel tentou banir da mente qualquer lembrança do desagradável incidente com Miss Ivors. Claro que a moça, ou a mulher, ou seja lá o que ela fosse, era uma entusiasta, mas existe hora para tudo. (pág. 217) 



Gabriel é tradicionalmente encarregado do discurso principal dessa Noite de Reis, e ele já chega à festa nervoso, consultando discretamente as anotações que traz no bolso, tenso pela obrigação de ser o mais brilhante. 
 
Miss Ivors tinha elogiado sua resenha. Estava sendo sincera? Será que ela tinha mesmo alguma vida pessoal além de seu propagandismo? Nunca tinha havido um clima negativo entre os dois até aquela noite. Ele ficava nervoso ao pensar que ela estaria sentada à mesa da ceia, olhando-o enquanto ele falava, com aqueles olhos inquiridores.  (pág. 219) 
 
Um dos poucos detalhes que o filme insere e que não estão no conto é na saída de Miss Ivors: ela se despede de todos, tem um compromisso – e o filme deixa claro que é uma reunião política. Uma mulher sozinha sai de uma ceia para uma reunião política! 
 
No conto, Gabriel Conroy tenta acomodar na vida real este fato estranho. 
 
-- Mas como vai para casa? – perguntou Mrs. Conroy.
-- Oh, daqui até o cais é um pulo.
Gabriel hesitou um momento e disse:
-- Se me permite, Miss Ivors, posso ir deixá-la em casa, se precisa mesmo sair.
Mas Miss Ivors desvencilhou-se dos dois. 
-- Não me falem mais nisso. Pelo amor de Deus, vão logo para sua ceia, e não se incomodem comigo. Sou bem capaz de cuidar de mim mesma. (pág. 223)
 
Logo em seguida vem a ceia, onde Gabriel, o “sobrinho preferido” das donas da casa, tem um duplo papel de estrela. Cabe a ele não só fazer o discurso, como a tarefa de cortar e servir as fatias do ganso. 
 
Gabriel sentou-se com autoridade à cabeceira da mesa e, tendo conferido o gume do facão, enterrou firmemente o garfo no corpo do ganso. Sentia-se totalmente à vontade agora, porque era um especialista no corte da ave, e nada lhe dava mais prazer do que ver-se à cabeceira de uma mesa bem servida. (pág. 225) 
 
A ceia, a reunião dessas pessoas, ocupa três quartos da narrativa, mas sua parte mais tocante é a volta de Gabriel e Gretta Conroy para o quarto do hotel (eles não moram mais em Dublin), e ali, quando Gabriel começa a se despir e a abraçar a esposa, cheio de expectativa por aquela noite a sós, livres da casa e das crianças, vê que ela está melancólica, distante, olhando a neve que cai lá fora. 
 
É então que ele, compreensivo, carinhoso, pede para saber o que se passa na cabeça dela. Ela está tão absorta que, sem negacear, começa a lembrar uma história de amor adolescente que viveu, e que nunca contara ao marido. Uma história que lhe foi despertada por uma canção cantada naquela noite, que ela escuta da escada, “The Lass of Aughrim”. 


 
É a história de um rapaz que ela conheceu quando muito jovem, um rapaz de 17 anos, chamado Michael Furey. Não foi uma paixão adulta, sensual. O rapaz, diz Gretta, era “muito delicado”, tinha “olhos escuros, imensos! E uma tal expressão neles – uma expressão!”.  Os dois, muito novos, costumavam caminhar juntos, e ele gostava de cantar “The Lass of Aughrim” para ela. 
 
Quando a família determinou que ela iria morar longe, o rapaz estava doente, mas fugiu de casa, numa noite de neve, para despedir-se dela. Ela o avista no quintal, perto de uma árvore. Ela diz: “Vá embora, você está doente, assim você vai morrer”. E o menino diz: “Eu não quero mais viver.” 
 
“Acho que ele morreu por minha causa”, diz ela. 




São as páginas finais do conto, e os minutos finais do filme, em que Anjelica Huston toma conta da cena, uma daquelas cenas intimistas e concentradas à maneira de Ingmar Bergman. Esta cena dá uma das medidas para compreender James Joyce, porque um contista de sua época seguiria a ladeira inevitável do melodrama, com cena de ciúmes, bate-boca, alguma escaramuça física por parte do marido que se sente "traído" ao descobrir que havia algum aposento na alma da esposa a que ele não tinha acesso. 
 
Joyce faz com que Gabriel Conroy, diante de mais esta perda de conexão com uma mulher que acreditava próxima, se veja, de certa forma, e pela primeira vez, pelos olhos delas. 
 
Uma consciência envergonhada de sua própria pessoa o invadiu. Ele se viu como uma figura ridícula, agindo como um menino de mandados para suas tias, um sentimentalista nervoso e bem intencionado, perorando diante do populacho e idealizando sua própria luxúria patética, um indivíduo cheio de empáfia e digno de pena, aquele mesmo que ele tinha vislumbrado no espelho. (pág. 251) 
 
A revelação humilhante é transformada por Joyce em epifania reveladora, porque a mulher, depois de chorar e chorar, deixa-se cair na cama e adormece. Ele fica à janela, contemplando a neve que cai e pensando na vida. 
 
O ar do interior do quarto esfriou seus ombros. Ele esticou o corpo cautelosamente para baixo do lençol e deitou-se ao lado da esposa. De um em um, eles todos estavam se tornando sombras. Seria melhor passar corajosamente para o outro mundo, dentro da glória plena de uma paixão, do que definhar e apagar-se com a velhice. Ele pensou em como aquela mulher ao seu lado tinha trancado em seu coração por tantos anos a imagem dos olhos do rapaz que amara, no instante em que ele lhe disse que não queria mais viver. 
 
Lágrimas generosas encheram os olhos de Gabriel. Ele nunca se sentira daquela maneira em relação a uma mulher, mas sabia que esse sentimento devia ser amor. As lágrimas se avolumaram em seus olhos e na escuridão parcial ele imaginou estar vendo o vulto de um rapaz parado embaixo de uma árvore gotejante. Havia outras formas por perto. Sua alma estava se aproximando de uma região habitada pelas vastas multidões dos mortos. E ele tinha consciência, mesmo sem compreendê-la, da sua existência incerta e bruxuleante. (pág. 255) 
 
Conta-se que este derradeiro episódio se baseia numa confidência real, feita pela mulher de Joyce, Nora Barnacle, sobre uma paixão de adolescência. O conto seria, entre outras coisas, um relato de um processo de aceitação e entendimento da vida alheia (da autonomia e da irredutibilidade da vida alheia) por parte do escritor. 
 
Outro ângulo interessante do conto é que Gabriel Conroy parece ser um daqueles irlandeses que de certa forma acham a Irlanda constrangedora em suas limitações e seus atrasos. Ele não compreende a velha Irlanda, assim como não compreende as mulheres. Os cosmopolitas querem a Europa, mesmo que ao preço da submissão à Inglaterra. Querem “ser aceitos lá fora” – como o próprio Joyce sempre quis. Como conciliar isso com o patriotismo cego dos irlandeses? A obra de Joyce é também o relato dessa epifania, da realização de uma obra onde a Irlanda continuasse Irlanda mas acomodasse dentro de si o mundo. 

 
 
 
 
 




sexta-feira, 28 de março de 2025

5166) A arte de ver e não-perceber (28.3.2025)

 

(Dustin Hoffman, em "Death of a Salesman")
 
 
Numa entrevista ao ótimo programa Inside the Actor’s Studio (YouTube), o ator Dustin Hoffman contou um fato interessante de sua carreira. 
 
Disse ele que seu pai foi um homem com muitos altos e baixos na vida profissional. Um problema do sr. Harry Hoffman é que tinha um sonho meio impaciente de ascensão social. Assim que conseguia um emprego melhor, mudava de casa, mudava de vida, punha-se a gastar. Logo em seguida vinha um aperto de grana. E ele tinha que se mudar de novo – “para baixo”, para o lugar de onde tinha acabado de subir. 
 
Dustin afirma que essa vida atribulada do pai lhe veio à mente quando ele estava trabalhando na peça A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, em que ele fez o papel principal numa montagem em 1984. Todos os problemas, os sacrifícios, as ilusões, etc., tudo que ele precisou botar de si no texto de Miller ele colheu de lembranças da infância, para usar no personagem de Willy Loman. Um vendedor envelhecido, que procura driblar as derrotas da vida refugiando-se num certo otimismo fantasioso. 
 
No dia da estréia da peça, na Broadway, ele estava nervosíssimo, inclusive porque o pai dele vinha assistir. Depois da peça, o pai foi abraçá-lo no camarim, elogiou o trabalho do filho, elogiou a montagem. E aí comentou: 
 
-- Mas esse seu personagem, hein?... Que fracassado, esse cara! 
 
“What a loser!” é a exclamação que o filho reconta, anos depois. Talvez Sigmund Freud ou Jacques Lacan sejam capazes de explicar esse fenômeno em que alguém vê seu tipo humano ou sua personalidade ou seu estilo de vida retratados numa obra dramática... e não o percebe. Não se vê ali. 





Não citei Freud de graça. No seu famoso ensaio O Estranho (Das Unheimlich, 1919) o doutor conta um episódio ocorrido numa viagem noturna de trem, quando o vagão deu um solavanco, abriu-se a porta de ligação com a cabine vizinha, e ele teve um vislumbre de um homem vestindo roupão e barrete de dormir. 
 
E Freud comenta: 
 
Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano.  Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta.  Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência. 
(S. Freud, Obras completas, Ed. Imago, trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza, p. 265.) 
 
Temos a tendência de cultivar uma imagem lisonjeira de nós mesmos, até por uma questão de sobrevivência. Precisamos achar que somos isto e aquilo, porque a vida lá fora é uma máquina de moer egos, é um matadouro de auto-estimas. Já dizia Nelson Rodrigues que sem um pouco de megalomania um sujeito não consegue nem sequer atravessar a rua. 
 
Isso deve valer nas duas mãos opostas, porque quando vemos um elogio grande demais também temos o impulso de acreditar que o interlocutor está com excessos de gentileza, ou então que aquilo não se refere a nós: “Ora, que é isso... quem sou eu!...” 


 
Como a “musa” do famoso “Soneto de Arvers”, uma pequena jóia poética de Félix Arvers, escrito em 1831. O poeta confessa uma paixão oculta por uma “musa” e diz que quando ela ler este soneto tão apaixonado não chegará nunca a perceber que foi ela mesma quem o inspirou. 
 
O terceto final, na tradução de Olegário Mariano: 
 
Fiel ao dever que a fez tão fria quanto bela,
perguntará, lendo estes versos cheios dela:
“Que mulher será esta?” E não compreenderá.
 
Esse processo de não-reconhecimento ajuda, decerto, muita gente errada a imaginar-se certa. Funcionários corrompidos, patrões cruéis, administradores desonestos, cônjuges adúlteros, todos veem seus tipos sendo retratados no cinema, nas telenovelas, na literatura... e veem isso no maior dos confortos, sem bater uma pestana sequer. É claro! Nada daquilo se refere a eles. O personagem é um calhorda pelo que faz – mas ele não, ele faz algo parecido mas diferente, tem uma série de justificativas que o ajudam a pousar a cabeça no travesseiro e dormir em paz toda noite. 
 
 
 




quarta-feira, 26 de março de 2025

5165) As Máquinas do Tempo (25.3.2025)





 
Tenho com alguns filmes antigos uma relação parecida com a que muitos amigos meus têm com séries tipo Star Wars ou Star Trek. Essas séries, no cinema ou na TV, me deixam indiferente. Sinto apenas a curiosidade normal quanto a qualquer obra de FC. Vejo, gosto disto, não gosto daquilo, tenho uma vaga simpatia-a-favor, mas fica por aí. 
 
Por essa razão, já fui acusado de insensibilidade por pessoas que ficam com lágrimas nos olhos ao assistir pela décima vez O Império Contra-Ataca ou A Ira de Khan. 
 
Entendo total. São filmes que eles conheceram na infância. Filmes que entraram na sua mente quando, por assim dizer, o portão mental ainda estava escancarado, convidativo. 



 
Alguns filmes que a gente vê na infância deixam uma impressão muito forte. Todos os filmes? Não, somente alguns. Por que? Por mil motivos diferentes. Dos filmes que vi com 12 anos de idade ou menos, alguns são clássicos do cinema que revi depois com ainda mais entusiasmo. Outros são filmes obscuros de que lembro algumas cenas e às vezes o titulo. Os demais não deixaram marca alguma. 
 
Nunca vi Star Trek na televisão. Não passava nos canais que eu assistia em Campina Grande quando garoto. E depois dos 18 anos fiquei usando televisão apenas para ver telejornal e futebol. 
 
Até os meus 30 anos de idade, Star Trek era apenas uma série famosa sobre a qual eu lia de vez em quando nos livros e revistas. Simpatizo com algumas premissas da série, que tem uma abordagem tipo “Ciências Sociais Aplicadas ao Universo”. E me identifico com o Sr. Spock, aquela ilha de sensatez. 



 
E a série Star Wars, do ilustre George Lucas? Quando assisti o primeiro filme da trilogia, eu não era mais candidato a fã de coisa alguma. Vi esse filme com 28 anos e já com muitos anos de fazer crítica de cinema em jornal. Gostei porque na época já lia sobre a pulp fiction das revistas dos EUA. Esse filme era uma mistura daquelas revistas com a nascente tecnologia de efeitos especiais. 
 
Star Wars e suas continuações (parei de acompanhar, depois de um certo momento) são uma “fantasia tecnológica” cheia de detalhes simpáticos e de ingenuidades, de “jornada do herói” diluída e de efeitos dramatúrgicos de seriado (assim como a série “Indiana Jones”, sua contemporânea). 
 
Considerá-la o protótipo do cinema de ficção científica é uma imprudência, mas ela é o primeiro título que vem à memória do público leigo no assunto (a maioria da humanidade). 




E no entanto... Aqui nesta página há uma pequena coleção de obras de FC/fantasia que vi com 12 anos ou menos, e estes, sim, me despertam sempre a mesma reação de fascínio e afeto, a mesma reação que meus amigos mais jovens têm com as séries. 
 
Sou totalmente consciente dos seus defeitos, mas perdoo tudo, porque eles me ajudaram a passar por portas que a literatura já havia aberto. Tive sorte (acho hoje) de ter minhas primeiras experiências de “narrativas da imaginação” através da literatura, sendo forçado, com isto, a visualizar por minha própria conta os cenários, ambientes e criaturas mais improváveis da pulp fiction a que eu tinha acesso. 



 
O cinema, porém, nos traz o impacto fatal das coisas prontas, das imagens que não precisamos imaginar. E que jamais imaginaríamos, por maior que fosse nossa capacidade delirante. O delírio do mundo é maior. 
 
Ver certas imagens, contemplar certas paisagens, acompanhar certos enredos... isto provoca uma ampliação da nossa consciência do possível. Mesmo quando o que vemos é claramente impossível. Não importa. Quando vemos um desses filmes, pouco importa a linha evolutiva da linguagem cinematográfica, pouco importa a grande Arte, pouca importa o mundo sério dos adultos. É a nossa capacidade de conviver mentalmente com o impossível que está sendo testada. 
 
Quem na vida adulta se criou – como eu – no universo-paralelo da crítica literária e da crítica cinematográfica às vezes acaba perdendo esta capacidade de se deslumbrar, acaba se apegando à “qualidade estética” como elemento único para definir uma obra. “Só gosto do que é bom”. 



 
Eu sempre procurei manter as duas janelas abertas: a busca pelo que nossa cultura considera a Grande Arte, e a busca pelo que esta mesma cultura considera Lixo Inexplicável. Como no símbolo do Yin-Yang, em cada uma delas existe uma semente da outra. 
 
Ray Bradbury disse, na epígrafe de suas Crônicas Marcianas
 
É bom quando a gente recupera a capacidade de se maravilhar. A Era Espacial transformou nós todos em crianças novamente. 
(trad. BT)
 
E Bradbury, em que pese certa água-com-açúcar presente em muito do que escreveu (e há defeitos maiores por aí), nunca perdeu de vista o lado sério que a vida também tem, o lado macabro, o lado dark, o lado cruel (vide Fahrenheit 451). 

 
Uma velha ironia do mundo da FC diz que a Idade de Ouro da ficção científica é quando você tem 14 anos. E é verdade. Não foi a década de 1930, nem a de 1960, nem a época atual. Foi quando o leitor, não importa qual, tinha uma mente já capaz de entender o que era possível e o que era impossível, e ainda capaz de se apaixonar por este último. 
 
O impagável G. K. Chesterton tem, como sempre, uma boa explicação para o poder da fantasia narrativa. No capítulo “The Ethics of Elfland” do seu clássico Orthodoxy (1908), ele faz um curioso paralelo entre a literatura realista e o deslumbramento da literatura de fantasia, usando crianças como exemplo. 
 
Diz ele:
 
Esse deslumbramento básico, porém, não é uma mera fantasia derivada dos contos de fadas; pelo contrário, todo o fogo contido nos contos de fadas deriva dele. Assim como todos nós apreciamos histórias de amor porque temos o instinto do sexo, todos gostamos de contos fantásticos porque eles tocam o nervo do nosso antigo instinto da fantasia.

 

Isto pode ser comprovado pelo fato de que quando somos crianças ainda muito novas não precisamos de contos de fadas: para nós, basta que seja um conto. A mera vida real já é suficientemente interessante. Uma criança de 7 anos pode se excitar ao ler que Tommy abriu a porta e viu um dragão. Mas uma criança de 3 anos se excita ao saber que Tommy abriu uma porta. Meninos gostam de histórias românticos, mas criancinhas gostam de histórias realistas – porque as consideram românticas. Na verdade, uma criancinha talvez seja a única pessoa, creio eu, capaz de ler um romance realista moderno sem ficar entediada.  (trad. BT) 

 

 

Acho que a idéia de Chesterton tem bastante fundamento, sem que precise ser uma regra universal. Todos sabemos o quanto criança pequena gosta mais da caixa-do-presente do que do presente. O presente pode ser um cyber-polichinelo “made in Taiwan” com balloons holográficos em cinco idiomas, mas o danado do guri só quer se esconder na caixa. 
 
É claro. Primeiro a gente conquista a realidade, o mundo de verdade, o mundo realista; e então a gente decola nos voos da imaginação. Talvez seja por isto que no Brasil a literatura realista continua a ter tanto peso: não sabemos ainda quem somos, não enxergamos (= não temos a ilusão de que enxergamos) o país por inteiro, e um espelho nos seduz mais do que um quadro de Salvador Dali. 
 
A literatura de imaginação é para as pessoas (ou os países) que já se deslocam no “mundo real” com segurança bastante para pegar uma pista e decolar rumo às estrelas. É justamente nesse momento da vida – digamos 14 anos, para acompanhar a citação lá em cima – que começa a Idade de Ouro da FC, porque o garoto ou a garota que lê já conhece o bastante do mundo para perceber o quanto aquilo é impossível, o quanto aquilo é diferente, o quanto aquilo é essencial. 




 






sábado, 22 de março de 2025

5164) Lendas urbanas do teatro (22.3.2025)



 
Voltando para casa, alta noite, sozinho, pelos becos escorregadios da Internet, me deparei com um saite inteiro dedicado a “Lendas Urbanas do Teatro”.  Aquele folclore relativo a montagens teatrais, lembrando de cenas hilárias ou inacreditáveis, mas que todo mundo garante que aconteceram (no teatro de sua cidade, sempre), porque “um primo da namorada do meu irmão estava lá, e viu”. 
 
Tenho certeza de que tudo aquilo é verdade, aconteceu de verdade: na Romênia, na Itália, no Cazaquistão, em Cajazeiras, em San Diego, em Bundanyabba. 
 
 
***



(imagem meramente ilustrativa)

 
A “Paixão de Cristo” é o foco principal desses acontecimentos, talvez por ser uma das peças mais montadas no mundo inteiro. Com a ressalva de que não é “uma peça”, e sim o mesmo mito cristão decorado, aprendido, recontado, reformulado e refeito diante do público momentâneo e eterno. 
 
Público que – somos humanos – não pôde conter o riso diante daquela montagem (em Burma, no México, em Maricá?) em que após a crucificação de Jesus, alguém se aproxima, sozinho no palco. Meu Deus... é Judas!  Black-out parcial, holofote só sobre ele, que vem cambaleando, pedindo perdão pela infâmia que cometeu. Arremessa para longe as moedas, que tilintam (e são mesmo trinta; uma assistente-de-direção virginiana encarregou-se deste tributo à verossimilhança). 
 
Aproxima-se da árvore fatal, aos brados: 
 
-- Traí meu mestre! Mereço a morte! 
 
Ele pára a um metro de distância: o galho é alto, e a corda que alguém deveria ter deixado guardada ali não está à vista. O público está com a respiração suspensa, e percebe o problema. 
 
Judas, num rasgo de improvisação, abre os braços dramaticamente: “Traí meu mestre! Quero morrer!” – e atira-se de cabeça no laguinho que há aos pés da árvore, tornando-se o primeiro Judas Afogado da história eclesiástica. 
 
***



(Vittorio de Sicca no teatro)

 
O teatro é um risco permanente diante do Acaso, e por isto é um convite permanente ao Improviso. Monte no tigre, e boa viagem. 
 
O grande Vittorio de Sicca contava que, ainda muito jovem, nos seus tempos de figurante anônimo e faminto, cabia-lhe entrar em cena no terceiro ato e entregar uma carta ao Marquês, ou Conde, ou algo assim. 
 
Quando foi na hora da cena, o rapazinho respirou fundo, entrou no palco e viu ali, bem à sua frente, o Monstro de Mil Rostos -- a platéia.  Não resistiu e caiu desmaiado. 
 
Era um bom motivo para correr o pano, mas (diz De Sicca) o ator do Marquês era macaco velho: levantou-se, recolheu a carta, pegou o rapazola desmaiado nos braços, e comentou com a platéia, enquanto o levava para a lateral: 
 
-- É... preciso esconder a chave da minha adega...   
 
E a casa veio abaixo. 
 
O teatro, como o futebol, vale por esses gols de bicicleta em que alguém tem meio segundo para conceber e executar uma obra-prima. 
 
 
***



(imagem meramente ilustrativa)

 
Outra de Semana Santa aconteceu em Campina Grande. É o que dizem – eu não presenciei, mas o que as pessoas presenciam em Campina não está no gibi. 
 
Fernando Silveira foi um grande radialista, da geração de meu pai. Por muitos anos escreveu todo tipo de programas para a Rádio Borborema. E escrevia também os famosos dramas religiosos, de vez em quando levados ao palco do Teatro Municipal. Entre eles a “Paixão de Cristo”. 
 
Reza a lenda que numa dessas montagens de Semana Santa a produção resolveu caprichar. Figurinos de primeira, cenários realistas, trilha sonora bem produzida. E na cena crucial da Última Ceia, depois de um blecaute de alguns segundos, a cena se iluminava para revelar no centro do palco a mesa tradicional, ocupada somente de um lado, como nos quadros. 
 
Jesus Cristo e os apóstolos estão acomodados... e a Ceia era uma ceia de verdade. Segundo testemunhos, foram encomendados na Cabana do Possidônio, que não ficava tão longe assim, seis galetos completos, com arroz, farofa, feijão verde, batata frita e molho vinagrete. Servida a mesa, Cristo e os apóstolos se sentaram, aspiraram com fervor aquele cheiro irresistível... Estavam todos famintos depois de uma tarde inteira de “ensaio geral com roupa e luz”, e atacaram os galetos com fúria. 
 
Foram os dez minutos mais silenciosos da História do Teatro. 
 
 
***



(David Suchet)

 
Esta eu vi contada num programa pelo próprio protagonista, o ator David Suchet, o ótimo “Hercule Poirot” da série de TV.  

Diz ele que na adolescência, quando fazia teatro estudantil, houve a estréia de uma peça, com o auditório do colégio lotado de pais, professores, agentes, profissionais de teatro. O segundo Ato deveria começar com o palco todo às escuras e no meio da escuridão o personagem de David chamava, com voz trêmula: 
 
-- Mamãe?... Mamãe?... 
 
Nem bem ele lançou seu chamado, a mãe dele, do meio da platéia, gritou: 
 
-- Estou aqui, David!... 
 
A gargalhada geral foi estrondosa, as luzes se acenderam, o diretor da escola veio ao palco e disse: 
 
-- Senhoras e senhores, vamos voltar e recomeçar o segundo ato. Pedimos a compreensão de todos e o seu silêncio... Senhora Suchet. 
 
E ele conclui dizendo: “Eu sempre a amei por isto”. 
 
 
********



(“Ensaio Droxtop”, Campina Grande, 1974)

 
Saber improvisar sem quebrar a cena é tudo. Aprende-se isto como se aprende tanta outra coisa na profissão artística: dando com a cabeça na parede. 
 
Muitas pessoas em Campina Grande hão de lembrar o grupo Droxtop, criado nos anos 1970 por Gutenberg Assis. Era um grupo de teatro experimental: quinze rapazes e moças que se apresentavam num palco escuro, iluminado pela famosa “luz negra” das boates (na época, uma novidade inquietante). 
 
Era o “Ensaio Droxtop”: música clássica, atmosfera gótica, todos vestindo túnicas brancas, com os rostos pintados de tintas fosforescentes, recitando textos próprios, e de poetas que iam de Augusto dos Anjos a Carlos Drummond e outros. 
 
Convivi muito com o grupo, porque era amigo do diretor e de grande parte do elenco (tínhamos a mesma idade), e na época eu era casado com Lili, Arly Arnaud, que era uma das integrantes. Assisti inúmeras apresentações. 
 
Certa vez o grupo se apresentou em Mossoró (ou Caicó?). Havia uma cena muito dramática em que dois atores, Sarmento e Jomário, agarravam um terceiro, Zé Antonio, e o amarravam a uma cruz, com cordas de verdade; depois, iam até um fogareiro de brasas, aceso no palco, onde estavam esquentando dois ferros de marcar gado (de verdade). Empunhavam esses ferros e um dos dois dizia: 
 
-- E o que faremos agora com este canibal? (apontando Zé Antonio amarrado na cruz). 
 
-- Vamos ferrá-lo! 
 
Era um momento dramático, porque os ferros estavam mesmo em brasa. Claro que o ator tinha amarrada ao peito, por baixo da camisa, uma placa de couro, que recebia os ferros, chiava, e produzia uma fumaça impressionante, enquanto o “canibal” se contorcia em dores histriônicas. 
 
Nessa noite em Caicó (ou foi Mossoró?) fizeram a cena, mas após o momento “oooh” a camisa de Zé Antonio pegou fogo. Os dois carrascos deram-lhe as costas e não perceberam: incorporados nos personagens, de ombros contraídos, brandindo os ferros flamejantes, fitavam a platéia com carrancas ameaçadoras, porque era justamente a hora de se retirarem do palco, deixando ali o crucificado. 
 
Ocorre que, na hora de se voltarem, perceberam que o crucificado se debatia em vão com as cordas, porque havia chamas em seu peito e a fumaça lhe subia pela cara. Jomário (ou foi Sarmento?) teve a presença de espírito de apontar para ele e bradar, por iniciativa própria: 
 
-- E este canibal?  O que fazemos com ele?! 
 
E Sarmento (ou foi Jomário?) saltou à altura da situação, apontando-o e bradando: 
 
-- Vamos levá-lo... para as profundezas do Inferno!!! 
 
Desamarraram o semi-desmaiado Zé Antonio e o conduziram para a coxia, onde alguém já o esperava com o providencial balde dágua. 



("Ensaio Droxtop", Campina Grande, 1974)





quarta-feira, 19 de março de 2025

5163) Machado de Assis: "Virginius" (19.3.2025)




Machado de Assis fugia do melodrama como o diabo da cruz. Não sei se essa comparação é adequada, apesar de ser um clichê da língua. Pode ser melhor dizer que o Machado de Assis maduro evitava o melodrama como um pároco evita um samba. 
 
Por melodrama me refiro às histórias de emoções exageradas, violência explícita, ação constante, aventuras disparatadas, enredos rocambolescos, reviravoltas implausíveis. Literatura sensacionalista; histórias que buscam acima de tudo envolver e sacudir o leitor, sem permitir que ele pense muito. Era assim que funcionavam, como regra geral, o melodrama no teatro e o romance-folhetim nos periódicos. 
 
Já folheei muito meu Volume II (Conto e Teatro, 1.168 págs.) das Obras Completas de Machado pela Ed. Aguilar (1959), em busca de contos policiais. São raros os contos dele onde há um crime violento; assim de chofre só me acodem à memória “A Cartomante” e “O Enfermeiro” (Várias Histórias) e “Virginius” (Outros Contos). Deve haver outros; e posso lembrar também o clássico “A Chinela Turca” (Papéis Avulsos), um dos meus preferidos, justamente por ser uma sátira ao folhetim/melodrama. 
 
“Virginius (História de um advogado)” é conto de juventude, publicado por Machado no Jornal das Famílias em julho-agosto de 1864. 
 
O advogado conta como recebeu um bilhete anônimo convocando-o a defender um réu, numa cidadezinha do interior. Ele vai para lá, hospeda-se na casa de um amigo, e toma conhecimento dos fatos. 
 
O crime ocorreu na fazenda de um patriarca bondoso, o velho Pio, conhecido como “Pai de Todos”. O filho deste, Carlos, tentou violentar a filha, Elisa, de um trabalhador humilde, Julião. Sequestrados e amarrados por Carlos e seus capangas, Julião percebe que a filha vai ser deflorada e antes que isso aconteça consegue livrar-se e mata-a com uma punhalada no coração.  
 
O advogado expõe as razões morais do crime: o pai matou a própria filha para evitar que fosse desonrada. Consegue uma pena reduzida (dez anos) para o criminoso. O conto se encerra com uma nota melancólica sobre os dois pais idosos que choram juntos a morte da jovem inocente.  



(Machado de Assis, by Loredano)


Machado tinha seus 25 anos quando o conto foi publicado,. É uma narrativa tateante, em que o autor por vezes pisa terreno sólido, principalmente ao reunir elegância e simplicidade de expressão, um dos pontos fortes do Machado de Assis maduro. Mas aqui, experimentando ainda seus instrumentos, ele se arrisca no terreno escorregadio do melodrama, onde tenta manter-se de pé com certo custo.  
 
Logo no início, ao receber o bilhete anônimo que põe a história em movimento, o narrador diz:  
 
Li e reli este bilhete, voltei-o em todos os sentidos; comparei as letras com todas as letras dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir.
Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e anônimo bilhete. (p. 711) 
 
O bilhete tinha sido enviado pelo fazendeiro, o velho Pio, comovido com o drama vivido pelo seu morador, e com remorso pela ação indigna do filho. E o conto não dá muita justificativa para que o bilhete fosse anônimo, a não ser o pretexto do mistério – melodrama puro. 
 
O bilhete, curiosamente, promete: 
 
Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos antecipadamente, mal puser o pé no estribo. (p. 711)
 
O advogado não responde à proposta, mas resolve aceitar. 
 
Ultimei uns negócios, dei de mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada das despesas e dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a cavalo e parti. (p. 711) 
 
Não posso deixar de ver nisto uma mecânica narrativa típica de Ponson du Terrail ou Maurice Leblanc. Pressupõe-se, então, que o portador do dinheiro ficou de tocaia à casa do advogado durante oito dias, para fazer-lhe o pagamento apenas quando constatasse sua intenção real de viajar. E como saberia o destino da viagem? 



(Machado de Assis, by Stegun)


Os personagens do folhetim vivem perpetuamente sujeitos a essa espécie de vigilância invisível por parte de gente que os ameaça ou os protege. Frases como “entrou-me em casa um sujeito desconhecido” são cacoetes do gênero, onde tanto o perigo quanto a fortuna descem do céu “ex machina”
 
O advogado parte em viagem, e aí aparece outra dessas informações novas que acometem os escritores durante a escrita de improviso. 
 
Só depois de ter feito alguma léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu ia morava um amigo meu, antigo companheiro de academia, que se votara, oito anos antes, ao culto da deusa Ceres, como se diz em linguagem poética. (p. 711) 
 
Ora, o advogado teve oito dias para preparar sua viagem à vila, e só quando estava na estrada lembrou-se desse amigo? Meio improvável, até pelo modo afetuoso e reverente com que, nas páginas seguintes, a amizade dos dois é descrita. 
 
Entrou nova porção de café. Tomamo-lo entre recordações do passado, que muitas eram. Juntos vimos florescer as primeiras ilusões, e juntos vimos dissiparem-se as últimas. Havia de que encher não uma, mas cem noites. (p. 713)
 
E o tempo inteiro o advogado continua seduzido pelo lado romanesco da pequena aventura que imagina estar vivendo: 
 
-- A que vens? A que vens? – perguntava-me ele.
-- Vais sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. (p. 712)
 
(...)
 
O meu amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar em um romance. (p. 713) 
 
Vamos adiante, logo para a cena da violência. O velho Julião chega em casa à noite, ouve gritos, surpreende Carlos (o filho do fazendeiro) atacando a moça Elisa, garantido por capangas. O rapaz larga Elisa e, com os capangas, subjuga e amarra Julião; e ao invés de consumar o estupro sai da casa, deixando ali o pai amarrado e a filha solta, com apenas um bandido de vigia. 
 
Para quê? Certamente para proporcionar a chance deste desfecho entre as vítimas: 
 
-- Elisa, tens realmente a tua desonra por uma grande desgraça?
-- Oh! Meu pai! – exclamou ela.
-- Responde! Se te faltasse a pureza que recebeste do céu, considerar-te-ias a mais infeliz de todas as mulheres?
-- Sim, sim, meu pai!
Julião calou-se. (p. 717)
 
A mocinha aproxima-se do pai, que está amarrado e sentado no chão, e aconchega-se a ele. 
 
A sentinela não dava fé do que se passava. Depois de alguns momentos do abraço de Elisa e Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A sentinela correu aos dois. Elisa caíra completamente banhada em sangue. 
Julião tinha procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça deixada por Carlos sobre uma cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a no peito de Elisa. Quando a sentinela correu para ele, não teve tempo de evitar o segundo golpe, com que Julião tornou mais profunda e mortal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas convulsões. 
-- Assassino! – chamou o sentinela. 
-- Salvador!... salvei minha filha da desonra! 
-- Meu pai!... murmurava a pobre pequena expirando. (p. 718) 





É um exemplo típico da literatura popular que se praticava na época de Machado, e não apenas no Brasil. Margaret Dalziel (Popular Fiction 100 Years Ago, Cohen & West, 1957) analisa a produção desses contos e romances em língua inglesa “cem anos atrás”, ou seja, meados do século 19.  São as mesmas situações exageradas, os vilões malévolos, as heroínas puras e ingênuas, as ações estereotipadas, as coincidências forçadas pelo autor. 
 
No conto de Machado, o vilão deixa a moça desamarrada, esquece uma faca de caça, deixa apenas uma sentinela, amarra o velho tão mal que ele consegue soltar um braço... Ou seja, o autor imaturo e entusiasmado faz todos os malabarismos possíveis para produzir uma situação pouco verossímil, porque não lhe ocorre (ele escreve às pressas, para publicação em jornal) uma solução melhor, então “não tem tu, vai tu mesmo”. Uma literatura baseada em efeitos de choque-e-espanto, na busca da emoção violenta a qualquer custo, avalizada, no contexto, pela inevitável “lição de moral”. 
 
A listagem cronológica da Wikipedia identifica “Virginius” como o quarto conto publicado por Machado de Assis. Era começo, comecinho-mesmo de carreira. Vê-se aqui do quê ele procurava se afastar vinte ou trinta anos depois. Alguns críticos condenam a “frieza emotiva” de Machado e esquecem que o “calor emotivo” era um dos principais recursos com que os escritores do melodrama subornavam a atenção e a fidelidade das platéias.
 
Era folhetim desbragado o objetivo do jovem escritor? Talvez não. No próprio conto ele puxa do bolso o trunfo classicista, a fonte acadêmica de sua inspiração.
 
Saí da cadeia alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu acabara de ouvir. No caminho as idéias se me clarearam. Meu espírito voltou-se vinte e três séculos atrás, e pude ver, no seio da sociedade romana, um caso idêntico ao que se dava na vila de ***.
Todos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de Sicília e outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi essa tragédia a precursora da queda dos decênviros. Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível tomá-la por simples simpatia, determinou o decênviro empregar um meio violento. O meio foi escravizá-la. Peitou um sicofanta, que apresentou-se aos tribunais reclamando a entrega de Virgínia, sua escrava. O desventurado pai, não conseguindo comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de açougue e cravou-a no peito de Virgínia.  (p. 719) 
 
A fonte clássica não cancela o fato de que, na imensa fazenda chamada Brasil, os filhos dos fazendeiros estupram a torto e a direito as filhas dos moradores. O que emperrou a narrativa de Machado foi o mecanismo narrativo deficiente – mesmo numa história tão superficialmente realista, teria sido preciso dar maior verossimilhança à ação dramática, e depender menos dos paroxismos de emoção alegados em dois ou três rabiscos. 
 
Machado de Assis nunca foi um grande autor de cenas de ação; é na observação que ele cresce, no comentário, na elipse, na lacuna. Obras de começo de carreira, não coligidas  pelo autor, nos ajudam a ver, futuramente, não apenas o rumo que buscava, mas o rumo que ele, ao amadurecer e entender com mais profundidade o que fazia, foi deixando para trás.